por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 17 de Outubro de 2006
Crónica 36/2006
Seria interessante que, aproveitando o élan deste Nobel da Paz, os bancos decidissem dedicar uma percentagem do seu crédito aos menos afortunados.
É uma piada mas também é verdade: para obter um empréstimo de um banco, é preciso demonstrar primeiro que não se precisa do dinheiro.
Se se precisa mesmo de dinheiro (principalmente se se trata de criar uma pequena empresa e principalmente se não se puder oferecer a hipoteca da casa como garantia), o mais provável é não o obter. E nem vale a pena imaginar as hipóteses de um pobre, desempregado, obter um empréstimo junto de um banco tradicional. Mesmo que seja para comprar uma caixa de ferramentas para poder ir trabalhar. Os empréstimos não são para os pobres.
A genial ideia de Muhammad Yunus, o criador do microcrédito, a quem acaba de ser concedido um mais que merecido Prémio Nobel da Paz, esteve em fazer exactamente o contrário do que as instituições de crédito tradicionais fazem: antes de mais, acreditar nas pessoas (na sua capacidade e na sua honestidade); em segundo lugar, não exigir garantias senão a palavra dos credores; em terceiro lugar, emprestar aos pobres (e, em particular, às mulheres, que têm no êxito do microcrédito um papel central).
O Banco Grameen é uma exaltante história de combate à pobreza e à exclusão que já emprestou 4.500 milhões de euros a 6,6 milhões de pobres, tendo mudado radicalmente a vida de muitos. E o exemplo frutificou: o Banco Mundial diz que o microcrédito já beneficiou 500 milhões de pessoas em todo o mundo, com uma particular incidência na Ásia.
Estes números ganham toda a sua dimensão quando pensamos que 1200 milhões de pessoas (uma em cada seis) vive com menos de 80 cêntimos de euro (um dólar) por dia e que outras 2700 milhões de pessoas vive com menos de 1,6 euros (dois dólares) por dia.
O microcrédito não é apenas para os países pobres e tem presença em muitos países desenvolvidos – onde os pobres abundam e onde o fosso entre os mais pobres e os mais ricos tem aliás aumentado.
Em Portugal, foi criada em 1998 a Associação Nacional de Direito ao Crédito (ANDC), instituição promotora do microcrédito, da qual são membros fundadores, além de vários indivíduos, as duas maiores instituições financeiras portuguesas: o Banco Comercial Português (BCP) e a Caixa Geral de Depósitos (CGD).
Segundo o site desta associação, foram concedidos desde o início da sua actividade "615 empréstimos (que criaram 711 empregos)" representando um total de "2.686.724 € de crédito concedido".
É possível que haja outras instituições de crédito portuguesas com linhas de microcrédito que a ANDC ignore ou não contabilize. Seja como for, penso que se pode dizer sem receio de errar que os números de microcrédito em Portugal são extremamente reduzidos. E só não se pode dizer que sejam insignificantes porque, para as escassas centenas que beneficiaram deles, eles foram certamente significativos.
Eles são porém certamente irrelevantes do ponto de vista das duas instituições financeiras em questão (já para não falar do conjunto dos bancos portugueses), quando comparados com os seus activos, o total de créditos concedidos, os seus lucros ou qualquer outro indicador.
Comemora-se hoje o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza. Seria interessante que, em comemoração da data, em nome daqueles objectivos de Desenvolvimento Sustentável com que as personalidades bem-pensantes recheiam as suas intervenções públicas, em nome dos princípios de Responsabilidade Social das Empresas que os empresários modernos gostam de citar e aproveitando o élan deste Nobel da Paz, cuja iniciativa tantos exaltaram, as instituições de crédito – a começar pelos sócios fundadores ANDC, o BCP e a CGD – decidissem dedicar uma percentagem do seu crédito aos menos afortunados, àqueles que querem criar o seu emprego e não têm como.
Seria possível dedicar a esse objectivo um milésimo do total de crédito? Um décimo milésimo?
Seria fácil fazê-lo, seria barato (não se trata de donativos, mas de empréstimos que são reembolsados!) e seria um gesto concreto de combate à pobreza e pelo desenvolvimento.
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