Texto escrito para o catálogo de Jorge Rodrigues, publicado pela Galeria Filomena Soares, sob a coordenação de João Pinharanda
1. Experimente-se definir luz. O desafio não nos permite chegar muito longe. Podemos tentar definir a luz a partir do conceito de visão, mas depressa concluímos que não é possível definir a segunda sem recorrermos de novo à primeira e encontramo-nos encerrados numa tautologia pouco produtiva.
A própria ciência define luz como a radiação electromagnética que é detectada pelo olho humano. A definição diz muito e pouco. A luz é um fenómeno físico, uma torrente de fotões, uma onda de partículas definível em termos objectivos de radiação, passível de ser medida por instrumentos e até divisível em categorias segundo os comprimentos de onda e as frequências, mas esta definição não dispensa o olho humano. No fundo, estamos a dizer que luz é aquilo que percebemos como luz e caímos de novo na tautologia.
A luz está no princípio de todas as suas definições, como no primeiro dia do Génesis.
Aquilo a que chamamos luz é a radiação electromagnética que vai dos 400 nanómetros de comprimento de onda (luz violeta) aos 700 nanómetros (luz vermelha) - sendo que um nanómetro é um milionésimo de milímetro – mas o aparente rigor destes números é falso: a luz não tem limites bem definidos, porque a gama de luz visível varia de pessoa para pessoa. Aquilo que para uma pessoa já é luz para outra é ainda escuridão – e não estamos aqui a falar da intensidade da luz mas da sua posição no espectro electromagnético, a que podemos chamar a sua cor ou o seu sabor. A mesma coisa se passa com o som, pois enquanto uma pessoa ouve distintamente o silvo penetrante de um apito usado para chamar os cães, outra apenas consegue ouvir o silêncio.
Os humanos também se conseguem aperceber da "luz" que está fora dos limites do visível: a nossa pele sente sob a forma de calor a radiação para lá do vermelho, a que chamamos impropriamente "luz" infravermelha. E os nossos genes sofrem constantes mutações causadas pela "luz" ultravioleta – que terá sido um dos principais instrumentos das mudanças evolutivas dos seres vivos.
Não é só a experiência da luz que é humana e intransmissível. É a sua própria natureza que é humana. Sem humanos haveria radiação, mas não luz. A luz não é o fotão mas a percepção do fotão. Só quando um fotão encontra uma retina e um córtex visual se transforma em luz.
Se não houver ninguém para ouvir o som da árvore que cai na floresta, ela também não será banhada por qualquer luz.
A luz é um axioma e está antes da definição, mas só está depois da percepção.
2. Por diferentes que sejam os dois fenómenos, a luz e o som sempre andaram de mãos dadas. Newton encontrou sete cores no espectro da luz solar (introduzindo entre o azul e o violeta um índigo que de outra forma poderia não ter entrado na lista) para forçar a analogia com as sete notas da escala musical. E sabemos que há telas que vibram de cor.
Ao contrário dos sons que nunca se misturam, por muito que se façam coincidir, e cujos elementos constituintes são sempre reconhecíveis para o ouvido treinado, a luz (as luzes) têm tendência para a unidade, para a fusão, como se tivessem horror à separação. Se apontarmos o foco de três projectores de cores para uma parede, o resultado é indistinguível daquele que seria causado por um único foco da cor resultante. Mas um acorde de três notas nunca será confundido com uma única nota.
Enquanto a música é a arte da fusão, a pintura sempre brincou com a análise da luz e da cor.
Pintar a luz, porém, é uma tarefa tanto mais impossível quanto a luz, estritamente falando, não tem cor – apenas permite ver as cores. Não é só a luz branca que não tem cor: a luz vermelha também não é vermelha e a azul não é azul. Elas apenas nos permitem ver o vermelho e o azul. A luz é aquilo que permite ver, um meio, um caminho, um meio de transporte de uma dada informação. Para ver a luz e pintá-la, teríamos de a iluminar. E com que é que se iluminaria a luz? Tudo o que conhecemos da luz são as cores, que são as suas sombras da caverna platónica.
A luz visível não, é paradoxalmente, aquela que nós vemos, mas a que nos deixa ver. A luz é apenas aquilo que nos deixa ver as cores. Ou as inventa.
É que o paradoxo da luz prolonga-se pela cor. As cores que vemos nas coisas que nos rodeiam não são as suas cores intrínsecas, mas as cores que elas reflectem, as cores que rejeitam. Uma parede vermelha absorve todas as outras cores do espectro e atira-nos o vermelho aos olhos. No fundo, a parede "é" tudo menos vermelha. E quando não há luz, a parede não "é" vermelha. Não é que o vermelho lá esteja e nós sejamos incapazes de o ver no escuro. No escuro, a cor não está, ainda que estivéssemos lá para a ver. Um jogo de essência e aparências. Quando abrimos a cortina só um bocadinho para ver se a cor lá está vê-mo-la aparecer, mas ela nasceu da janela e não da parede. As fotografias a cores só existem depois de saírem da câmara escura. A cor dá-se à luz.
Também a cor é humana. Mais humana ainda do que a luz pois os receptores de cor que temos na retina não existem sequer na maioria dos mamíferos. Mais humana ainda do que a luz, porque as variedades da sua percepção são imensas. Há daltonismos de todas as cores e há cores cujo conceito nem sequer existe na cabeça de certas pessoas.
A textura da luz não é mais que a cor do ar ou de outro meio que ela atravesse. Por isso o céu é o lugar da luz na pintura e na teologia. A luz nunca está, passa. Como o tempo. Ou o som. A luz (como a electricidade) é uma forma de energia que não se consegue armazenar nessa forma. A luz que sai da lâmpada quando o interruptor deixa passar a electricidade esteve guardada na água parada das barragens
A luz é movimento por definição – o mais rápido movimento que se conhece. Um movimento indefinível e infinito, tão rápido que ninguém a vê mover, tão rápido que ela parece omnipresente. Com sorte, às vezes, capturamo-la furtivamente, numa aura ou numa aurora, mas a luz não é mais clara à luz da ciência que à luz da arte.
José Vítor Malheiros
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