terça-feira, janeiro 24, 2006

O mesmo e outra coisa

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 24 de Janeiro de 2006
Crónica 4/2006

Se Cavaco é a economia, o rigor e a seriedade, e Soares a política e a paixão, Alegre é a cidadania e a procura de outra coisa.


A eleição de Cavaco Silva à primeira volta não pode considerar-se uma surpresa, anunciada como foi pelas sondagens e pela evidência disponível para todos os que quisessem ver.

O facto mais surpreendente destas eleições é outro, que as sondagens também já tinham anunciado, mas ninguém tinha levado demasiado a sério: o segundo lugar de Manuel Alegre, destacado de Mário Soares. Nas sondagens, a posição inflacionada de Alegre podia ser um ajuste de contas com o PS, sem a responsabilidade do voto, por parte de alguns eleitores. Mas não foi isso que aconteceu – o que prova o rigor crescente das sondagens e como elas devem ser levadas a sério.

A votação de Alegre é significativa não por aquilo que ela diz dele (não nos diz nada de novo, ao contrário, por exemplo, da votação em Jerónimo de Sousa) mas pelo que diz do eleitorado – e é significativa independentemente do que Alegre faça desses votos nos próximos tempos.

O milhão de eleitores que votou numa candidatura de esquerda sem apoio de nenhum partido evidencia que não só há vida política para além dos partidos mas que há uma esquerda democrática para além dos partidos e que uma parte da esquerda que sustenta habitualmente com o seu voto o aparelho e as clientelas socialistas o faz por falta de alternativa. Poderá dizer-se que as ideias (vagas) expressas na campanha por Soares eram ainda menos alinhadas e menos conservadoras que as ideias (igualmente vagas) de Alegre, cujo apelo ao movimento cívico dos cidadãos aparece sempre embrulhado numa mensagem patriótica de etiologia duvidosa. Mas a imagem romântica de Alegre cidadão, candidato de cidadãos, para uma república de cidadãos, excedeu as limitações do seu discurso. O facto é tanto mais significativo quanto Alegre não representa uma fractura populista antipartidos (como o eanismo) mas uma alternativa no seio de um partido. Se Cavaco é a economia, o rigor e a seriedade, e Soares a política e a paixão, Alegre é a cidadania e a procura de outra coisa.

É evidente que a procura dessa outra coisa (ou melhor: de outras “outras coisas”) também se manifesta nas candidaturas de Francisco Louçã ou de Jerónimo de Sousa, mas estas candidaturas aparecem do lado de fora do poder, onde essas lógicas são parte da própria alterdoxia. Com Alegre, essa procura ainda não é uma doxa e surge no seio de uma área que o “establishment” político julga suficientemente representada pelo Partido Socialista. Não está e o fenómeno não é novo, mas endémico - ele já tinha sido evidente com Pintasilgo, por exemplo.

2. Houve na noite das eleições atropelos entre os vários directos, como seria inevitável, por atabalhoamento ou cálculo. Mas aconteceu um que não podia ter acontecido: o de José Sócrates, interrompendo Manuel Alegre. Falando na ambígua qualidade de secretário-geral do PS e de primeiro-ministro (garantiu “bom relacionamento e colaboração institucional” com o novo PR), Sócrates obrigou as televisões a desviar as câmaras de Alegre para si (apesar das hesitações evidentes na dança das imagens).

O gesto foi grosseiro, acintoso, prepotente e indiciador do pior possível para o Partido Socialista.
Se Sócrates falava como primeiro-ministro (e é impossível não falar, dadas as circunstâncias) deveria dar espaço a todos os candidatos. Se falava como dirigente do PS mandaria a cortesia, o pragmatismo e o respeito pelo eleitorado que reconhecesse o militante do seu partido que alcançou o melhor resultado.

Posteriormente, o gabinete de Sócrates veio dizer que não teria sido por acinte que se teria sobreposto a Alegre mas por descuido.

Que a nossa única esperança seja a incompetência da equipa do primeiro-ministro revela a pouca ambição das nossas expectativas.

Por outro lado, que Soares não tenha referido Alegre é compreensível – formalmente tratava-se apenas do segundo votado - ainda que isso deixe a dúvida sobre se Soares terá percebido que foi o azedume que o perdeu.

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