Texto publicado no jornal Público a 3 de Janeiro de 2006
Crónica 1/2006
Na expressão de votos há uma ideia de abnegação, mas os votos de cartão de Boas Festas são mais baratos.
O fim e início do ano são momentos propícios para a expressão de desejos. Eles aparecem nos cartões que mandamos aos amigos e nos votos que trocamos na rua e no emprego. “Um Bom Ano!”, “Desejo a V. Exa. e Excelentíssima família um excelente 2006”, etc.Os votos são desejos que se exprimem mas foram antes disso apelos à divindade - e continuam a ser. Fazer votos é desejar mas é também prometer. Mais concretamente: é prometer algo em troca de uma contrapartida – castidade em troca de graça divina, perpétuo louvor a Deus em troca de um filho, boa vontade em troca de benesses para os nossos amigos.
Enviamos aos nossos amigos os nossos votos de bom ano porque eles são uma declaração de solidariedade – e porque nos sentimos bem quando nós próprios os recebemos – mas também porque são uma forma de conjurar os deuses e esconjurar os demónios. Fazemo-lo por esse hábito que não sabemos se é costume se superstição, mas que é certamente um pouco dos dois.
Não é só em relação aos outros que exprimimos desejos no início do ano: também o fazemos em relação a nós próprios. Só que o fazemos em geral em segredo, para não nos comprometer. O problema dos votos de Bom Ano é precisamente que neles não existe uma promessa nem um compromisso – na maioria dos casos há apenas uma fórmula; nos casos mais fervorosos, um pedido. Na expressão de votos há uma ideia de abnegação, até de sacrifício, mas os votos de cartão de Boas Festas são mais baratos.
Para uma cultura de pobreza e ignorância, sebastianista e religiosa como a portuguesa, os votos de Bom Ano revestem-se do pior significado possível: são a manifestação viva da fé messiânica. Para os portugueses, os votos de Bom Ano não são uma mera fórmula. São a voz do desespero e da única esperança, um grito irracional na salvação inesperada e imerecida, em qualquer coisa que não dê muito trabalho mas dê todos os frutos ou que nem sequer dê frutos mas nos isente de preocupações, como Cavaco Silva, o novo Quadro Comunitário de Apoio ou o Euromilhões.
Para os portugueses, praticamente isentos de contaminação calvinista, os desejos de Bom Ano que distribuímos não possuem nenhum compromisso de investimento ou de trabalho, apenas suplicam uma dádiva: pedem que a prosperidade nos caia em cima da cabeça.
Isso não quer dizer que os nossos votos não possam mudar a realidade – isto mesmo sem recorrer à explicação “deus ex machina” de Deus. O filósofo francês Alain dizia que não é o amor que mantém os casamentos, mas sim a boa educação (“politesse”) e o mesmo se pode dizer de muitas outras relações – com maioria de razão. Os votos de Bom Ano são úteis porque existe uma probabilidade não nula de que se possam transformar em profecias auto-realizadoras. Pode ser porque isso aviva a centelha divina que nos ilumina ou apenas porque a propaganda funciona, mas todos sentimos vontade de ser melhores quando ouvimos “Paz na Terra aos homens de boa vontade”. Porque não haverá isso de funcionar para “Espero que 2006 lhe traga a si e a todos os seus toda a felicidade que desejam”?
São esses os meus votos: que consigamos fazer de 2006 algo melhor do que fizemos em 2005.
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