terça-feira, julho 05, 2011

O fim da classe média portuguesa

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 5 de Julho de 2011
Crónica 27/2011

Dois trabalhos jornalísticos de sinal contrário obrigam-nos a pensar na classe média



“Classe média” é um conceito difícil de definir, dizem os sociólogos. “Classe” é já de si um conceito de definição escorregadia, mas quando pretendemos cortar às classes às camadas as dificuldades adensam-se. Os parâmetros que se podem ter em conta são diversos: nível económico, tipo de profissão, círculo social, educação, cultura, tipo de consumos, auto-imagem. Mas, para mais, quando um destes critérios manda classificar alguém na classe média, os outros às vezes indicam outra classificação. E, quem é classe média num país, pode ser indigente noutro - a paisagem manda.
A nossa sensação é que toda a gente se auto-classifica na classe média - talvez seja por sermos mesmo da classe média e as pessoas que conhecemos também serem - mas, de facto, um estudo citado no Público de domingo (International Social Survey, 2000) dizia que isso apenas acontece com 47,9 por cento dos portugueses. É estranho, porque as expressões “classe baixa” e “classe alta” nem parecem portuguesas, soam-nos mal. Aliás, só as empregamos eufemisticamente. Só dizemos “classe baixa” em tom depreciativo e “classe alta” em tom despeitoso, duas formas de desdém. Só quando dizemos “classe média” é que nos parece normal. Claro que não pomos toda a gente no grande saco da classe média por pendor igualitário, e é por isso que nos apressamos a especificar: média-alta, média-média, média-baixa. Muitas classes médias.
Quando havia uma fábrica cheia de operários e um dono da fábrica era tudo fácil: classe alta, classe baixa. Mas quando o trabalho se tornou mais complexo e a necessidade de competências se multiplicou lá veio a classe média complicar as coisas: operários especializados bem pagos (era o dinheiro que os punha na classe média), contabilistas (a gravata), engenheiros (a educação, uma ida à ópera).
Há uma definição de classe média que sempre usei: a classe das pessoas que, depois de cobertas as suas necessidades básicas (habitação, vestuário, alimentação, transportes, educação) possuem recursos para gastos supérfluos (passeios, férias, livros, discos, uma “extravagância”, um ocasional produto de luxo). É evidente que a dificuldade persiste: há quem fique sem dinheiro depois de comprar dois tailleurs Chanel e quem tenha de poupar no almoço para comprar um livro. Li agora na Wikipedia que The Economist considerava que na classe média estavam as pessoas que podiam dispor de um terço dos seus rendimentos para gastos discricionários. (Eu chamaria a isto média-média, mas está bem.)
Nos últimos dias, dois trabalhos jornalísticos vieram obrigar-nos a reconsiderar a classe média: um foi um artigo do director do semanário “Sol”, José António Saraiva, com conselhos à classe média para que possa manter o mesmo nível de vida gastando menos (http://sol.sapo.pt/inicio/Opiniao/interior.aspx?content_id=22108&opiniao=Pol%EDtica+a+S%E9rio). Outro foi um trabalho de Andreia Sanches, publicado anteontem aqui no Público, sobre famílias da classe média subitamente empobrecidas (http://jornal.publico.pt/noticia/03-07-2011/em-casa-ate-tenho-uma-televisao-boa-mas-nao-posso-comer-a-televisao-22300172.htm). Os conselhos de JAS são simples: comprar um Mercedes C em vez de um Mercedes E, fatos Do Homem em vez de Armani, Raposeira em vez de champagne Cristal.
Já Andreia Sanches faz-nos um retrato de situações dramáticas de famílias ainda há pouco “bem sucedidas” e que se vêem obrigadas a recorrer a ajuda alimentar - famílias “da classe média” mas sem dinheiro para comer. Sabíamos, pelas ONG que trabalham na área, que estas situações estavam a aumentar dramaticamente. Andreia Sanches mostra-nos as pessoas e a destruição inexorável da frágil classe média portuguesa, com o seu esperado efeito de cascata: menos consumo, menos vendas, menos produção, mais desemprego. JAS exibe o absoluto desconhecimento da realidade e a falta de consciência social da classe dos privilegiados. As duas visões são o reflexo da iniquidade crescente da sociedade portuguesa, uma situação que é não só injusta como geradora de injustiça crescente, explosiva.
Marx, depois de ter dado milhares de vezes três voltas na tumba, por uma vez esfrega as mãos de contente. (jvmalheiros@gmail.com)

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