terça-feira, junho 28, 2011

E por que não usar o bom senso para administrar justiça?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 28 de Junho de 2011
Crónica 26/2011

Com frequência, o sistema judicial alcança ao fim de anos resultados que uma pessoa sensata alcançaria numa hora

1. No concelho da Guarda, três irmãs envolveram-se numa disputa em torno da campa da sua mãe. A mãe, que morreu em 2004, tinha sido enterrada num talhão do cemitério que pertencia a uma das filhas e esta, invocando os direitos de propriedade (e talvez movida por querelas antigas), impedia as suas irmãs de “colocar flores e outros objectos no túmulo da mãe, de aí rezarem e de se aproximarem do talhão". As irmãs processaram a proprietária da campa para conseguir através da justiça o acesso a que consideravam ter direito natural, mas o Tribunal da Guarda não lhes deu razão, considerando que o direito de propriedade se sobrepunha ao direito das irmãs a rezar na sepultura da mãe. As duas queixosas levaram o caso ao Tribunal da Relação de Coimbra, que acabou por determinar que a proprietária do talhão tinha de permitir o acesso das irmãs à campa e autorizar que estas aí depositassem flores, ainda que não pudessem colocar no túmulo lápides ou outros objectos não efémeros.

2. Um casal de namorados ganhou quinze milhões de euros no Euromilhões. Depois de cobrado o prémio, e após peripécias várias que incluíram o fim do namoro, cada um deles decidiu reivindicar para si a totalidade do dinheiro, um porque tinha sido o autor da chave vencedora, o outro porque tinha registado o boletim. O caso foi levado ao Tribunal Cível de Barcelos em 2007, que dividiu salomonicamente o prémio ao meio. Mas os ex-namorados não aceitaram a decisão e levaram o caso ao Tribunal da Relação de Guimarães que, há poucas semanas, decidiu manter a decisão da primeira instância.

3. A característica mais importante que os casos acima partilham é que ambos poderiam ter sido decididos com justiça e de forma expedita, no espaço de algumas horas, caso a decisão tivesse sido entregue a três pessoas de bom senso (ou a uma só) e apenas com um rudimentar conhecimento da lei. Em vez disso, ambos percorreram durante anos a aleatória via sacra dos  tribunais comuns e gastaram muitos milhares de euros ao erário público e a bolsos privados, assim como milhares de horas de trabalho inútil e provocaram angústias escusadas. Casos como estes existem aos milhões. Milhões de casos onde o sistema judicial submete a um escrutínio literalmente mentecapto e inacreditavelmente lento aquilo que o simples bom senso poderia reparar com justiça, rapidamente e a contento de todos.

4. No meio da verdadeira receita para a recessão plasmada no Memorando de Entendimento assinado entre o Estado português e a troika, existem algumas medidas que são pura indignidade (como quando se exige que o Governo cumpra o Orçamento de Estado que for aprovado no Parlamento, qual pai severo que repete ao filho que não se deve mentir) e existem também boas propostas, ainda que todas velhas. Uma delas - que consta aliás também do programa eleitoral do PSD - é a aposta em novos meios para resolução de disputas, além dos tribunais clássicos. De facto, a aposta nos tribunais arbitrais, dos quais já existe grande experiência internacional, poderia não só dirimir conflitos de forma expedita mas frequentemente de forma mais justa, evitando alguns aproveitamentos ilegítimos das formalidades que regem o funcionamento dos tribunais comuns e que se traduzem tantas vezes em denegação de justiça, geralmente em detrimento dos mais frágeis. Finalmente, uma experiência alargada da justiça arbitral - dos conflitos de vizinhos e das pequenas dívidas às disputas laborais -, se fosse gerida com grande rigor e transparência, poderia ter uma influência positiva na relação que os portugueses mantêm com a justiça e na imagem que possuem dos tribunais, de onde a confiança está hoje conspicuamente ausente. (jvmalheiros@gmail.com)

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