Por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 7 de Dezembro de 2010
Crónica 42/2010
Num estado democrático, a actividade do Estado é levada a cabo em nome do povo, com o dinheiro do povo e para benefício do povo
O principal problema com a mega fuga de informação levada a cabo pela WikiLeaks e conhecida pelo nome de Cablegate é o facto de ser mega.
Quando se divulgam 251.287 mensagens trocadas ao longo de anos, é evidente que no molho vão informações de cariz diferente, de interesse variável e cuja divulgação tem consequências diversas.
[Para mais, apesar da enxurrada de notícias que têm enchido a imprensa mundial desde o passado dia 28 de Novembro, a esmagadora maioria das mensagens não é ainda conhecida. A WikiLeaks entregou a totalidade das mensagens a cinco órgãos de comunicação (El País, Le Monde, The Guardian, Der Spiegel e The New York Times), que estão a investigá-las e as divulgam seguindo os seus próprios critérios e ao seu ritmo, entregou alguns subconjuntos a outros órgãos de comunicação e a organização está ela própria a publicar alguns documentos, mas não existe um arquivo aberto onde toda a gente possa desde já consultar todo o material – ainda que esse pareça ser um dos objectivos finais.]
A fuga de mensagens diplomáticas encheu de dezenas de histórias as primeiras páginas dos jornais, suscitou frissons de voyeurismo, a indignação de cidadãos confrontados com a duplicidade dos seus líderes políticos, o reconhecimento de outros perante a divulgação de indícios de corrupção no seu país, a excitação dos historiadores, o embaraço dos EUA, a raiva incontrolada dos poderosos visados de forma crítica nos documentos e acessos de fúria assassina na direita americana – com apelos à execução do soldado americano acusado (mas não julgado) de estar na origem da fuga das informações, Brandley Manning, e ao assassinato do líder da WikiLeaks, Julian Assange. Mas, paralelamente, suscitou uma vaga quase unânime de condenação – mais à direita, mas até à esquerda – perante a “irresponsabilidade” de colocar na praça pública aquilo que devia estar resguardado do olhar da plebe e em defesa da necessidade de discrição nas tarefas da governação.
[Houve quem considerasse o Cablegate como “o 11 de Setembro da diplomacia mundial”, inúmeras vozes que defenderam que a WikiLeaks tinha levado a cabo um ataque terrorista e que Assange devia ser tratado como um “combatente inimigo”, quem preconizasse um total secretismo no futuro para garantir que a história não se repete, outros que previram o fim da diplomacia como a conhecemos, etc.]
Curiosamente, nos media, apesar de todos aproveitarem com avidez os restos do festim dos Cinco Grandes, têm sido hesitantes as defesas do comportamento da WikiLeaks e são relatados com factualidade os incitamentos ao assassinato de Assange.
O que pensar? Há coisas que se podem afirmar com segurança. A primeira é que a WikiLeaks e Assange parecem ter tratado a divulgação do CableGate com grande sentido de responsabilidade, entregando os dados a media respeitáveis que tiveram, por sua vez, o cuidado de não divulgar informações que pudessem pôr pessoas em risco e a máxima lealdade em relação às fontes citadas, avisando-as do que iam publicar e, em certos casos, negociando a protecção de certos dados. Se houve informações que não deviam ter sido publicadas mas acabaram por o ser, isso são as vicissitudes normais da actividade jornalística, que nem sempre satisfaz os seus padrões de qualidade – o que não justifica que, por esse motivo, se defenda o fim da imprensa livre.
Quanto à fuga em si, seria conveniente que os defensores do segredo diplomático a todo o custo tivessem em conta que, num estado democrático, a actividade do Estado é levada a cabo em nome do povo, com o dinheiro do povo e para benefício do povo. Defender que o povo não tem direito a conhecer essa actividade a não ser quando já não pode fazer nada para a influenciar é de um paternalismo que não é compatível com a defesa da democracia.
Isto quer dizer que tudo deve ser transparente e divulgado? Não. É verdade que seria difícil fazer diplomacia assim. Mas quer dizer que, quando algo que é confidencial acaba por ser divulgado, o seu autor deve ser capaz de andar de cabeça levantada, porque deverá ser evidente que os seus actos se pautaram sempre por normas de dignidade e de defesa do interesse público.
O que a mega fuga da WikiLeaks nos ajuda a perceber é que esses padrões de comportamento estão muito longe do que deviam ser – e não se trata apenas da normal hipocrisia da política mas de entorses aos direitos humanos, de corrupção, de cleptocracia, de tráfico de influências.
Que os corruptos deste mundo – na Ucrânia, no Afeganistão ou noutro país – se sintam um pouco menos seguros do que antes de 28 de Novembro é algo que me agrada. Como me agrada que os EUA (e Portugal, e os outros países) se sintam mais submetidos ao escrutínio dos cidadãos do mundo, mais vulneráveis a denúncias e mais relutantes em se envolverem em negócios sujos.
E isso é algo que temos de agradecer à WikiLeaks. (jvmalheiros@gmail.com)
Nota: Os parágrafos assinalados entre parêntesis rectos foram suprimidos pelo autor na versão publicada no Público, por razões de espaço.
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