por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 30 de Novembro de 2010
Crónica 41/2010
Crónica 41/2010
Que se chame “animação” a infernizar os ouvidos dos passantes e moradores parece uma maldição moderna
O pequeno carrossel gira lentamente na praça gelada. A tabuleta por cima do guichet diz que uma volta custa dois euros, quatro voltas seis euros, dez voltas dez euros. A rapariga que vende os bilhetes tem uma T-shirt da Misericórdia de Lisboa e há publicidade dos Jogos da Santa Casa por todo o Rossio. “O carrossel é da Misericórdia de Lisboa?” pergunto-lhe. “Não, o carrossel é particular. A T-shirt é porque a Misericórdia patrocina a animação”. “Ah, bom!”, digo eu, “então quer dizer que aquilo (aponto a tabuleta com os preços) não está em vigor?” “Sim, aquilo são os preços…” “Mas, disse-me que a Misericórdia patrocinou a animação…” A rapariga sorri condescendente, disposta a explicar-me os meandros da teoria económica que sustenta as indústrias culturais. “É que não são só as voltas”, explica. “Há o transporte, a instalação…” “Mas dois euros é o que custa um carrossel não patrocinado pela Misericórdia de Lisboa!” A rapariga sorri sem palavras com aquele ar simpático já-lhe-expliquei-tudo-mas-você-é-muito-estúpido-para-perceber.
Ao lado está uma pista de “gelo”. É “gelo” e não gelo. É feito daquele plástico branco que se usa para fazer tábuas para cortar a carne e os patins são parecidos com patins de gelo. Há uma música infernal que envolve todo o Rossio e há barracas e barreiras de metal das que se usam para conter as multidões por todo o lado. O Rossio é um estaleiro, feio, com música agressiva e em volta da coluna do D. Pedro IV está um andaime com um aspecto muito, muito robusto e com luzes. Percebe-se que tiveram de fazer uma intervenção de urgência na estátua que ameaçava ruína, que só tinham ali à mão aquelas vigas das mais grossas, que não houve grande tempo para pensar e que puseram umas luzes para disfarçar, aproveitando que é Natal. É muito feio, mas sendo um caso de emergência, admite-se. A escolha da música também se justifica. As seis pessoas que patinam parecem não se importar e uma funcionária de serviço até trauteia uma das canções. Talvez o faça inconscientemente. O efeito repetitivo destas canções é similar ao de uma trepanação medieval. Mas quando o mercado pede, que solução há senão dar-lhe com o que pede?
O Rossio está igual a si próprio. Quando o Natal ou outra data qualquer se aproxima há sempre alguém disposto a pôr-lhe uns barracões sujos em cima, uns contentores, uns tapumes, espalhar cabos e altifalantes nas árvores, uma música esganiçada a sair dos altifalantes e a chamar-lhe animação. A mim pareceu-me mais morto que vivo e os basbaques – ao contrário do que diz a organizadora Associação de Dinamização da Baixa Pombalina – não me pareceram mais dinâmicos do que os do costume.
A única coisa de que gostei foi de dois jovens espanhóis que faziam bolas de sabão gigantes em frente à Suíça e umas palhaçadas malabarísticas. Simples. Bonito. Divertido. Sem barulho. Sem música aos berros. Sem barracas. Sem pagar dois euros. Sem T-shirts de propaganda. Imagino que há centenas como eles que poderiam animar de facto o Rossio caso fosse essa a intenção. Li que os artistas de rua são pagos pela Câmara e os mamarrachos pela Misericórdia. O sentido do acordo com a Misericórdia escapa-me.
Que se chame “animação” a infernizar os ouvidos dos passantes e moradores parece uma maldição moderna. Mas não tem de ser. Como não tem de ser esta ocupação selvagem da paisagem urbana pela publicidade. A Misericórdia de Lisboa é uma boa causa, mas isso não justifica que ma enfiem pelos olhos e pelos ouvidos quando quero passear pelo Rossio. A miséria da Câmara não justifica esta prostituição e atravancar o Rossio não é uma necessidade. Além de que há maneiras menos invasivas de o fazer. Basta pensar nisso um pouco antes do Natal. Que tal aproveitar a Web para recolher ideias para a animação do próximo Natal, o de 2012, o de todas as crises? Requisitos: a Câmara não pode gastar um tostão a mais do que gastou este ano, não pode haver publicidade agressiva, não pode haver música aos berros, solicita-se um mínimo de gosto. A Câmara quer começar a recolher as ideias? (jvmalheiros@gmail.com)
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