por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 17 de Novembro de 2010
Crónica 39/2010
Crónica 39/2010
Nós, o povo, temos o direito de saber onde se gasta TODO o nosso dinheiro
No início dos anos 80, quando todas as palavras de ordem eram a respeito de outra crise, da qual quase todos os arautos – à direita e à esquerda - acreditavam que o capitalismo social, o neo-liberalismo, o fim do Estado-Providência e a iniciativa individual à la Reagan nos iriam salvar, era comum ouvirmos dizer, como argumento demolidor, que “crise” em chinês se escrevia com dois caracteres: o de “perigo” e o de “oportunidade”.
Se até os chineses (povo sábio, como todos os orientais) diziam isso há milénios, tinha de ser verdade. Por isso, quando se ficava desempregado e a fome ameaçava roer-nos a barriga, bastava pegar na crise com as duas mãos, dobrar-lhe o pescoço, agarrar na oportunidade que iria sair-lhe pela boca, criar a nossa própria empresa, lançá-la na bolsa, enriquecer e escarnecer dos pobres de espírito que continuavam de mão estendida a mendigar salários aos patrões e subsídios aos Estados.
A história dos caracteres chineses é tão falsa como as promessas do capitalismo popular, mas antes da WWW era mais difícil do que hoje encontrar um sinólogo ao virar da esquina. De facto, um dos símbolos mandarins significa “perigo” e o outro significa “momento crucial”, mas não há nada de intrinsecamente positivo na ideia de crise na China ou em Portugal. Mesmo lida em mandarim, “crise” significa “momento de perigo”.
A equação “crise=perigo+oportunidade” mostrava a crise como algo neutro do ponto de vista das consequências, com resultados bons e maus, ou até como um processo altamente positivo, selectivo e purificador, que permitia melhorar a sociedade, seleccionando os vencedores e deitando os vencidos para o caixote de lixo da história. Reagan adorava, Thatcher também e a esquerda entaramelou a língua durante os trinta anos seguintes sem saber o que havia de dizer. Ainda entaramela.
Pelo meu lado, porém, sempre acreditei que crise representava de facto perigo+oportunidade. Há perigos vários para quase todos e oportunidades para uns quantos. Não há perigo para os banqueiros. E não há oportunidades para um operário de cinquenta anos despedido.
Posto isto, é evidente que as crises são momentos de consciência aguda de um problema.
Esta consciência deveria, no mínimo, fazer-nos a todos exigir algumas coisas concretas, muito simples, que não vão evitar a próxima crise, nem tornar os políticos mais honestos nem os empresários mais dinâmicos, mas que podem melhorar algumas práticas e evitar-nos algumas surpresas desagradáveis no futuro.
Uma das coisas que penso que se tornou dramaticamente evidente e que penso que todos – da esquerda, da direita e do meio – estaremos de acordo em exigir é uma maior transparência no gasto dos dinheiros públicos. O que é hoje fácil de conseguir com o uso da Internet. Só que não estou a falar apenas dos orçamentos da Administração Pública mas de todos os dinheiros públicos. A regra devia ser simples: TODO o dinheiro que saiu do bolso dos contribuintes deve ver o seu gasto divulgado e justificado. TODO. Incluindo o dinheiro das empresas públicas e municipais, o das instituições privadas financiadas por dinheiros públicos, o das Parcerias Público-Privadas. TODO. Tal como está, o Orçamento de Estado representa uma ficção mais do que mostra. Ninguém conhece a verdadeira dimensão do défice ou da dívida porque a maior parte deles está escondida em instituições que não aparecem no OE. Entidades “privadas”, mas que usam o nosso dinheiro. Nós, o povo, temos o direito de saber onde se gasta TODO o nosso dinheiro. Como temos o direito de conhecer TODOS os contratos que se assinam (com empresas privadas ou outras entidades) para gerir o nosso dinheiro, o nosso património e os nossos serviços. Há segredos comerciais ou outros envolvidos? Que se instaure um embargo de dois anos, então. Alguém, no sistema político, contesta isto? E, se não contestam, porque não o põem em prática? (jvmalheiros@gmail.com)
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