terça-feira, novembro 02, 2010

A austera, apagada e vil tristeza da retórica


por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 2 de Novembro de 2010
Crónica 37/2010

Que Cavaco Silva tenha sido Presidente da República e que queira reincidir é algo que os portugueses não merecem

É difícil escrever isto porque toda a gente vai pensar que a minha opinião se deve apenas ao facto de não concordar com as ideias do homem (não é verdade que ele não tenha ideias. Tem. São ideias simples, tacanhas e egoístas, ideias pequeninas, mas tem). E vão pensar que a minha ausência de simpatia me tolda o espírito crítico. Apesar disso, correndo o risco de não ser acreditado, arrisco-me a garantir que a minha avaliação é eminentemente técnica. E é dessa perspectiva que avalio o discurso de recandidatura de Cavaco Silva como uma das peças retóricas mais tristes que já me passaram pela frente.
Podem pensar que isso me compraz porque não vou votar no homem e nunca aderi às suas “ideias”. Mas de facto, não. Teria gostado que um candidato à Presidência da República – em princípio a fina flor da política – nos mostrasse uma visão mobilizadora, um entusiasmo genuíno, capacidade de liderança, brilho intelectual, compreensão do mundo e das pessoas, uma viva inteligência e compaixão e conseguisse acender uma chama de esperança nos corações dos que o ouvem. Isso era o que teria gostado – mesmo que não fosse votar no homem. Isso dar-me-ia esperança. Mostrar-me-ia que a paixão da causa pública ainda pode atrair os melhores e que há na política aquele debate de ideias e de visões que gostamos de acreditar que pode garantir as melhores escolhas. Mas, em vez disso, apareceu-me Aníbal Cavaco Silva. Repito que o digo sem a mínima acrimónia. Com tristeza, com uma austera, apagada e vil tristeza, quase com desespero, mas sem acrimónia. Cavaco Silva poderia certamente ter sido um excelente contabilista, talvez um bom acordeonista e tenho todas as razões para pensar que é um exemplar pai de família. Mas que tenha sido ministro e primeiro-ministro e Presidente da República e que queira reincidir é algo que os portugueses não merecem.
A culpa não é toda dele. Afinal o homem tem um staff (dois staffs, de facto), assessores, conselheiros, funcionários, amigos, correligionários, vizinhos, primos e friends do Facebook que lhe podiam dizer qualquer coisinha, mas não disseram e não dizem e não vão dizer.
Transformar Cavaco Silva em Barack Obama não é possível, mas não será que podiam ter arranjado um discurso para o homem ler? Um discurso – como dizer – que alguém tivesse escrito depois de ter pensado? Tiveram cinco anos de mandato para pensar e saíram-se com isto? Tiveram meses de reflexão sobre a recandidatura e saíram-se com isto? Que Cavaco Silva não sabe falar já sabíamos - abençoados tabus, quanta platitude nos pouparam – mas o homem sabe ler. Não há ninguém que não veja a tonelada de lugares-comuns e de auto-elogios confrangedores naquelas páginas? Não há ninguém que não tenha reparado que a ideia forte do discurso era “eu já cá estou há muito tempo por isso acho que era melhor deixarem-me continuar”?
A culpa não é de Cavaco Silva por outra razão. A retórica política não tem tradição em Portugal. À tristeza retórica do PR junta-se a tristeza do PM (com mais gritos mas a mesma vacuidade) e a tristeza da oposição. Recordam-se de algum bom discurso político nos últimos trinta anos? Algum que tenha ultrapassado a circunstância estreita em que foi escrito? Com ideias, com brilho, que mexesse de alguma forma connosco? Não se lembram porque não há. E também não os há do candidato-poeta Manuel Alegre, com responsabilidades mais sérias neste capítulo. Ou há e eu não os conheço. Se quiserem, provem-me que estou errado. Enviem-me as vossas propostas de discursos portugueses históricos para o mail. (jvmalheiros@gmail.com)

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