terça-feira, dezembro 14, 2010

A festa frágil

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 14 de Dezembro de 2010
Crónica 43/2010
 
Os WikiLeaks não são uma história, são as Mil e Uma Noites em edição ampliada

1. A Web é uma festa. Ele é notícias em todos os jornais e em e em todos os sites e em todos os blogs. Ele é comentários e críticas e opiniões e discussões por todo o lado, dos think tanks às redes sociais, dos tablóides aos jornais sérios, das universidades às ONG. Ele é porta-vozes de governos e de bancos a dizer que não sabem, que não comentam, que não disseram, que não sabiam, que não fizeram, que não viram, que não ouviram, que não pediram, que não prometeram, que não roubaram, que não mentiram, que alguém percebeu mal, que era só a fingir, que não podem, que não estão. Ele é boicotes à Amazon e ao PayPal, ataques DDoS à Visa e ao MasterCard e a mais uns quantos, ele até transborda para manifestações IRL e petições e donativos e fundos de defesa e 1697 mirrors do site WikiLeaks. Ele é Keep us strong e Courage is contagious e Cavaco Silva, português suave, lembrando que "Portugal tem uma imprensa muito suave". Ele é jornalistas a discutir o que devem fazer os jornalistas, jornais a explicar o que devem fazer os jornais, assessores a garantir que os jornais só estão a dizer coisas que já toda a gente sabia e que essas coisas por acaso até são mentira, cientistas sociais a tentar perceber o que é a Web, estudantes a perceber pela primeira vez para que servem os diplomatas, analistas políticos a tentar explicar que o cabelo branco de Assange prova que ele fez um pacto com o demónio, políticos a tentar perceber o que raio devem fazer os políticos, democratas a perguntar se tanta transparência não fará mal à vista, conservadores a gritar que chegou a anarquia, anarquistas a anunciar que vem aí o fascismo, candidatos presidenciáveis a lançar fatwas contra o líder da WikiLeaks, fascistas a aconselhar a zona da nuca de Assange onde se deve encostar a pistola, líderes religiosos a garantir que o tiro só será pecado se for ao domingo, lexicólogos a tentar perceber se WikiLeaks é feminino ou masculino, advogados a lembrar que não estão de lado nenhum mas que podem estar dos dois, polícias a lembrar o que pode acontecer a quem tentar dizer aquilo que lhe passa pela cabeça. Os WikiLeaks não são uma história, são as Mil e Uma Noites em edição ampliada, 24/7 e 360 graus. Ainda só foram divulgadas 0,5% das 251.287 mensagens mas o impacto começa a fazer ondas.

2. Houve duas coisas que o caso Wikileaks já mostrou: o imenso poder mas também a imensa fragilidade da Internet. Se é verdade que surgiram logo centenas de sites-espelho para impedir que o boicote da EveryDNS e da Amazon impedissem o site de se manter no ar, é igualmente verdade que o bloqueio à WikiLeaks por parte de grandes empresas financeiras como a PayPal (subsidiária da EBay), a Visa e a MasterCard quase conseguiram asfixiar a organização.
Actualmente, a coordenação das actividades de apoio à WikiLeaks, a Julian Assange e a Bradley Manning (o analista militar na origem do Cablegate) faz-se usando principalmente duas redes sociais: o Facebook e Twitter. O que aconteceria se uma delas (ou ambas) decidisse tomar uma atitude contra a WikiLeaks – como fizeram as até então insuspeitas Amazon e PayPal – devido a pressões políticas?
A Internet, espaço “anárquico” de “liberdade total” não é um espaço de liberdade total e tem donos e chefes – como os chineses bem sabem. Umas poucas dezenas de grandes empresas controlam a Internet mundial: as comunicações, o hosting, as pesquisas, as finanças e as praças públicas que são as redes sociais. Uma situação cuja fragilidade só é sensível em momentos de crise como os actuais. O que esta crise mostrou é que é fundamental criar redes sociais que escapem a esses controles e que possam funcionar de forma totalmente descentralizada, na cloud da Internet. Um desafio técnico mas um imperativo cívico. (jvmalheiros@gmail.com)

Sem comentários: