Em resposta à seguinte mensagem de Tiago Tibúrcio:
"Zé Vítor, concordando com a afirmação de princípios, tenho muitas dúvidas sobre o que fica implícito no que escreves aqui. E o que fica implícito é uma certa absolutização do valor transparência, da ideia da verdade, sobre os vários valores... que devem ser tidos em conta. Se tiver tempo, gostaria de desenvolver sobre isto. Por enquanto, ficam-me algumas interrogações: defenderias o mesmo aplicado ao segredo jornalístico? Creio que, servindo um fim público (direito de informar - e, até por isso, beneficiando de algumas prerrogativas legais neste domínio), a questão que colocas também tem pertinência neste âmbito. Outra interrogação: o teu texto pressupõe que os jornalistas estão preparados para fazer a ponderação que referes entre os bens conflituantes mas – e acharás porventura isto uma infâmia – tenho muitas dúvidas. Noto uma certa tendência no jornalismo para, onde existe um feixe de valores em tensão, ver as coisas a preto e branco, recusando a complexidade das coisas. Claro que admito excepções. Que julgo casuisticamente (não consigo arranjar qq critério). Repara: estamos a falar de uma área absolutamente excepcional do ponto de vista do escrutínio mediático, que a lei considerou dever beneficiar de determinado regime de segredo para melhor prosseguir o bem comum. É estritamente neste âmbito que digo isto. Talvez o preço a pagar seja uma certa impunidade de alguns actores públicos. Também é esse o preço a pagar por termos direito à privacidade e não termos os nossos telefones todos sob escuta."
December 22, 2010 at 5:52pm Regresso à argumentação, depois do Natal.
Antes de mais, Tiago, não defendo nenhuma absolutização, nenhum primado, do valor "transparência", nem explícita nem implicitamente. (Já agora, nem deste valor - se é que se trata de um valor - nem d...e qualquer outro: os bens são para se conjugarem e não para se ofuscarem, mas isso é outra conversa).
Pelo contrário, defendo e defendi explicitamente, aqui mesmo, numa outra Nota ("Democracia sem transparência?"), que o segredo se justifica em diversos contextos. O que defendo é, precisamente, que o segredo (de Estado, diplomático, etc) não é um valor absoluto e que deve ser pesado - em cada momento, em cada contexto, por cada actor - contra outros bens.
O que acontece é que os detentores dos segredos - que são, não por caso, também os impositores dos segredos - pretendem erigi-los em valores absolutos. O que digo é que isso - a transformação do segredo, de todos os segredos, num valor inviolável (merecedor de pena de morte, dizem muitas vozes nos EUA!) - é o caminho para a autocracia, porque vai retirando pedaços crescentes de informação (e de soberania) ao povo. Se entregarmos a um grupo de poderosos o direito a definir o que é segredo e se essa classificação não for passível de avaliação, de desafio, de contestação, de validação, teremos criado um buraco negro impenetrável à lei, à democracia, aos direitos. Isso não é admissível.
Não se pode decidir sem saber. Se queremos que o povo decida, o povo tem de saber. O povo pode escolher delegar esse poder em certos casos nos seus representantes eleitos, mas nos casos onde o segredo foi instituído nem sequer esse escrutínio existe. Ora, numa sociedade democrática, nada - sublinho nada - deve fugir ao controlo do povo soberano, último juiz.
Como se coaduna, então, a necessidade de um certo segredo, em certos contextos, com o escrutínio do povo, que exige transparência? Esse equilíbrio é difícil de definir, deve ser discutido em cada momento pela sociedade e é dinâmico. Se não pretendo destruir o segredo, também não pretendo ter encontrado a receita do ponto de equilíbrio ideal entre segredo e transparência.
Mas o que penso é que esse equilíbrio tem de ser definido através de sondagens (no sentido geológico do termo, não sociológico) da aplicação prática da norma. E essas sondagens são as fugas.
No final do meu texto defino algumas regras que penso que se deveriam usar na aplicação do estatuto de segredo: "O segredo deve ser justificado caso a caso, deve ser excepcional, temporário e, quando é finalmente revelado, deve ser evidente o benefício que gerou ou o malefício que evitou." Se estas regras não forem aplicadas isso significa que o segredo é apenas um instrumento de repressão, de concentração de poder, de sequestro do poder do povo.
Não há nenhuma razão para que um telegrama diplomático (ou os termos de um contrato público) não seja divulgado passado um curto período de tempo. Se o segredo se justifica num dado momento, ele não se pode justificar eternamente.
E, se os poderes não respeitam essas limitações, elas devem ser impostas por quem puder. Sempre? De forma indiscriminada? Não. Quando houver fundadas razões para desconfiar que a lei protege a iniquidade, a autocracia, o crime. Desobediência civil em nome da democracia.
A dignidade da lei não advém do facto de alguém dizer que ela é lei, mas do processo democrático que lhe dá origem ("No taxation without representation", etc.). E o processo democrático tem de ir até ao escrutínio da aplicação real da lei, não pode ficar pela avaliação da bondade da teoria que está na origem da lei. Se não seguíssemos estas regras a lei seria um puro instrumento de subjugação.
As leis não são apenas o resultado de uma discussão teórica entre pontos de vista diferentes, mas de conflito de interesses, de confronto entre poderes, de um braço de ferro real. O poder da fuga de informação é um poder a ter em conta nesse confronto. E o que é claríssimo para mim é que, se esse poder da fuga de informação pudesse ser aniquilado com cem por cento de eficácia, se se pudesse garantir sempre a estanquidade do segredo, a nossa sociedade seria muitíssimo menos democrática. Seria o primado do princípio "todo o poder aos poderosos".
A divulgação, ilegal, de informação classificada como secreta são os checks and balances a entrar pela janela quando os atiramos pela porta fora. Quanto mais iníqua for a lei, mais necessária é a desobediência. Quanto mais opaca e desonesta é a política, mais necessária é a fuga de informação.
2. O público faz um julgamento destas fugas. E, se é verdade, que muitas das informações são inócuas, outras revelam comportamentos criminosos e desrespeito pelos direitos humanos. A utilidade da fuga de informação é evidente. Mas vejamos agora o preço deste benefício. Será que estamos a atropelar os direitos fundamentais dos protagonistas destas trocas de mensagens?
Aceito sem problema que a impunidade de alguns criminosos seja um preço a pagar pelo respeito pelas liberdades. Mas, para começar, não se trata aqui, em caso algum, de liberdades individuais. Não se trata de "termos os nossos telefones todos sob escuta". Nem sequer dos telefones deles. Nem sequer de vasculharmos as gavetas das secretárias de trabalho deles, onde poderíamos topar com algum objecto pessoal. Trata-se de agentes do Estado, a agir nessa qualidade, na qualidade de nossos representantes (dos cidadãos dos seus países). Além de que, mais uma vez, há uma assimetria na equação: por que deixaríamos que fossem apenas os poderosos, os donos dos segredos, a ser protegidos por essa impunidade que seria o preço do respeito pelas liberdades? Que argumento poderíamos usar para defender que fossem os donos dos segredos a definir as regras de acesso a esses segredos, sabendo que essas regras lhes confeririam uma relativa impunidade, permitindo ao mesmo tempo que os outros cidadãos, os que não têm o poder de dizer que algo é segredo, nunca tivessem o benefício de impunidade alguma? Um privilégio de casta, reservado aos agentes do Estado? Um direito divino?
3. Não atribuo nenhuma prerrogativa particular aos jornalistas. No caso da WikiLeaks, nem Julian Assange nem Bradley Manning (presumível autor da fuga) são jornalistas. O estatuto do autor da fuga é, para mim, irrelevante, ainda que não o seja o seu móbil. É relevante para mim que ambos tenham considerado que a divulgação destas mensagens era importante para reforçar a cidadania (mais accountability, mais verdade no discurso político, etc.). O meu julgamento dos seus actos seria outro se tivessem usado as mensagens para fazer chantagem com os seus autores ou para as vender pela melhor oferta, como é evidente.
4. Quanto a quem define "bem comum", etc. Somos nós. A nossa consciência. Aceitando as consequências. E argumentando. Tentando levar o consenso social, a prática política e o produção das leis para o lado que consideramos mais justo.
Antes de mais, Tiago, não defendo nenhuma absolutização, nenhum primado, do valor "transparência", nem explícita nem implicitamente. (Já agora, nem deste valor - se é que se trata de um valor - nem d...e qualquer outro: os bens são para se conjugarem e não para se ofuscarem, mas isso é outra conversa).
Pelo contrário, defendo e defendi explicitamente, aqui mesmo, numa outra Nota ("Democracia sem transparência?"), que o segredo se justifica em diversos contextos. O que defendo é, precisamente, que o segredo (de Estado, diplomático, etc) não é um valor absoluto e que deve ser pesado - em cada momento, em cada contexto, por cada actor - contra outros bens.
O que acontece é que os detentores dos segredos - que são, não por caso, também os impositores dos segredos - pretendem erigi-los em valores absolutos. O que digo é que isso - a transformação do segredo, de todos os segredos, num valor inviolável (merecedor de pena de morte, dizem muitas vozes nos EUA!) - é o caminho para a autocracia, porque vai retirando pedaços crescentes de informação (e de soberania) ao povo. Se entregarmos a um grupo de poderosos o direito a definir o que é segredo e se essa classificação não for passível de avaliação, de desafio, de contestação, de validação, teremos criado um buraco negro impenetrável à lei, à democracia, aos direitos. Isso não é admissível.
Não se pode decidir sem saber. Se queremos que o povo decida, o povo tem de saber. O povo pode escolher delegar esse poder em certos casos nos seus representantes eleitos, mas nos casos onde o segredo foi instituído nem sequer esse escrutínio existe. Ora, numa sociedade democrática, nada - sublinho nada - deve fugir ao controlo do povo soberano, último juiz.
Como se coaduna, então, a necessidade de um certo segredo, em certos contextos, com o escrutínio do povo, que exige transparência? Esse equilíbrio é difícil de definir, deve ser discutido em cada momento pela sociedade e é dinâmico. Se não pretendo destruir o segredo, também não pretendo ter encontrado a receita do ponto de equilíbrio ideal entre segredo e transparência.
Mas o que penso é que esse equilíbrio tem de ser definido através de sondagens (no sentido geológico do termo, não sociológico) da aplicação prática da norma. E essas sondagens são as fugas.
No final do meu texto defino algumas regras que penso que se deveriam usar na aplicação do estatuto de segredo: "O segredo deve ser justificado caso a caso, deve ser excepcional, temporário e, quando é finalmente revelado, deve ser evidente o benefício que gerou ou o malefício que evitou." Se estas regras não forem aplicadas isso significa que o segredo é apenas um instrumento de repressão, de concentração de poder, de sequestro do poder do povo.
Não há nenhuma razão para que um telegrama diplomático (ou os termos de um contrato público) não seja divulgado passado um curto período de tempo. Se o segredo se justifica num dado momento, ele não se pode justificar eternamente.
E, se os poderes não respeitam essas limitações, elas devem ser impostas por quem puder. Sempre? De forma indiscriminada? Não. Quando houver fundadas razões para desconfiar que a lei protege a iniquidade, a autocracia, o crime. Desobediência civil em nome da democracia.
A dignidade da lei não advém do facto de alguém dizer que ela é lei, mas do processo democrático que lhe dá origem ("No taxation without representation", etc.). E o processo democrático tem de ir até ao escrutínio da aplicação real da lei, não pode ficar pela avaliação da bondade da teoria que está na origem da lei. Se não seguíssemos estas regras a lei seria um puro instrumento de subjugação.
As leis não são apenas o resultado de uma discussão teórica entre pontos de vista diferentes, mas de conflito de interesses, de confronto entre poderes, de um braço de ferro real. O poder da fuga de informação é um poder a ter em conta nesse confronto. E o que é claríssimo para mim é que, se esse poder da fuga de informação pudesse ser aniquilado com cem por cento de eficácia, se se pudesse garantir sempre a estanquidade do segredo, a nossa sociedade seria muitíssimo menos democrática. Seria o primado do princípio "todo o poder aos poderosos".
A divulgação, ilegal, de informação classificada como secreta são os checks and balances a entrar pela janela quando os atiramos pela porta fora. Quanto mais iníqua for a lei, mais necessária é a desobediência. Quanto mais opaca e desonesta é a política, mais necessária é a fuga de informação.
2. O público faz um julgamento destas fugas. E, se é verdade, que muitas das informações são inócuas, outras revelam comportamentos criminosos e desrespeito pelos direitos humanos. A utilidade da fuga de informação é evidente. Mas vejamos agora o preço deste benefício. Será que estamos a atropelar os direitos fundamentais dos protagonistas destas trocas de mensagens?
Aceito sem problema que a impunidade de alguns criminosos seja um preço a pagar pelo respeito pelas liberdades. Mas, para começar, não se trata aqui, em caso algum, de liberdades individuais. Não se trata de "termos os nossos telefones todos sob escuta". Nem sequer dos telefones deles. Nem sequer de vasculharmos as gavetas das secretárias de trabalho deles, onde poderíamos topar com algum objecto pessoal. Trata-se de agentes do Estado, a agir nessa qualidade, na qualidade de nossos representantes (dos cidadãos dos seus países). Além de que, mais uma vez, há uma assimetria na equação: por que deixaríamos que fossem apenas os poderosos, os donos dos segredos, a ser protegidos por essa impunidade que seria o preço do respeito pelas liberdades? Que argumento poderíamos usar para defender que fossem os donos dos segredos a definir as regras de acesso a esses segredos, sabendo que essas regras lhes confeririam uma relativa impunidade, permitindo ao mesmo tempo que os outros cidadãos, os que não têm o poder de dizer que algo é segredo, nunca tivessem o benefício de impunidade alguma? Um privilégio de casta, reservado aos agentes do Estado? Um direito divino?
3. Não atribuo nenhuma prerrogativa particular aos jornalistas. No caso da WikiLeaks, nem Julian Assange nem Bradley Manning (presumível autor da fuga) são jornalistas. O estatuto do autor da fuga é, para mim, irrelevante, ainda que não o seja o seu móbil. É relevante para mim que ambos tenham considerado que a divulgação destas mensagens era importante para reforçar a cidadania (mais accountability, mais verdade no discurso político, etc.). O meu julgamento dos seus actos seria outro se tivessem usado as mensagens para fazer chantagem com os seus autores ou para as vender pela melhor oferta, como é evidente.
4. Quanto a quem define "bem comum", etc. Somos nós. A nossa consciência. Aceitando as consequências. E argumentando. Tentando levar o consenso social, a prática política e o produção das leis para o lado que consideramos mais justo.
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