por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 19 de Outubro de 2010
Crónica 35/2010
Texto publicado no jornal Público a 19 de Outubro de 2010
Crónica 35/2010
Usar a Segurança Social para que uns milhares de privilegiados possam manter hábitos de luxo é imoral
O Governo tem um problema. Não é o único problema nem o mais importante, mas este é um daqueles que o Governo admite: o Governo não sabe como aplicar o corte de 10 por cento nas pensões acima de 5000 euros.
Se fosse nos salários, era fácil – como vai ser fácil, aliás. Se fosse nas pensões mais baixas também era fácil. Se fosse mais um aumento de IRS era fácil, ou do IVA, ou do IMI, ou do imposto de selo. Mas cortar nos pensionistas de luxo, naqueles que se reformaram aos cinquenta anos para acumular duas ou três pensões (além de continuarem a trabalhar e a receber salários, porque recuperaram milagrosamente do cansaço que os obrigou à reforma) aí, é “complicado”.
Não é que a administração fiscal não saiba quem ganha o quê. Não é que a administração fiscal não saiba quem paga o quê a quem e quanto e quando. Mas é complicado, pronto.
Para começar, nunca se começou. É verdade que esta situação imoral é denunciada há anos, e que todos sabemos que o dinheiro da Segurança Social anda a servir para pagar reformas de luxo a quem não precisa delas, mas nunca se tentou fazer o levantamento ou conceber o sistema que permitiria fazer o levantamento dessas situações. A razão? É complicado, já dissemos.
Uma das razões por que isso é complicado é que muitos destes pensionistas são pessoas educadíssimas, de excelentes famílias. Alguns são ex-governantes que usufruem das suas pensões por terem exercido cargos políticos. Outros são políticos de outras esferas. Outros são altos funcionários da Administração Pública. Outros são altos quadros de empresas públicas ou privadas. Outros são todas estas coisas juntas. Todos eles se reformaram porque tinham direito à reforma. Melhor, às reformas, porque o que aqui nos preocupa são os acumuladores de pensões e subvenções. E todos eles a solicitaram porque imaginaram que estavam demasiado doentes ou fragilizados para trabalhar e a sua única hipótese de sobreviver era a solidariedade nacional. Depois, quando descobriram que afinal podiam trabalhar e começaram de facto a dar umas aulas aqui, a fazer uma consultoria ali, a receber uma avença acolá, mais um part-time além, ter-se-ão esquecido de que estavam a receber as pensõezinhas.
A imoralidade é clara. Não é admissível que, no contexto actual de cortes salariais, apenas seja objecto de um corte de dez por cento a parcela do cumulo de pensões que exceder 5.000 euros. Por que não se faz então a mesma coisa com os salários? Trata-se apenas de mais uma borla oferecida à oligarquia. Não é admissível que se garanta tão repetidamente que estes cortes apenas vigorarão em 2011, quando a mesma garantia não existe para os salários. Não é admissível que sejam proibidas as acumulações de pensões com salários do Estado mas se permita a acumulação de salários privados com pensões públicas. Finalmente, não é admissível que essa proibição não abranja aqueles que já beneficiam neste momento dessas acumulações e que apenas atinja os futuros pensionistas.
Já se sabe que tudo isto representa apenas uns poucos milhões. Mas usar a depauperada Segurança Social para que uns milhares de privilegiados possam manter hábitos de luxo é imoral.
Há outra norma que seria bom adoptar. Não tenho nada contra o facto de alguém conquistar o direito a uma pensão por inteiro por ter sido deputado ou ministro durante uma dúzia de anos. A regra é defensável. Mas o “direito a uma pensão por inteiro” não significa que essa pensão deva começar a ser paga imediatamente, quando o beneficiário ainda está em idade activa e produtiva e tem, efectivamente, emprego. O que seria lógico e decente seria que esse direito fosse accionado apenas – salvo casos de verdadeira necessidade – no momento da idade da reforma. (jvmalheiros@gmail.com)
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