terça-feira, junho 23, 2009

Crónica de viagem

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 23 de Junho de 2009

Crónica xxx/2009

Veste um vestidinho de manga curta, tem sacos na mão, está cansada e transpirada, é nova, tem uma boca dura e infeliz


"Foda-se! Foda-se! Foda-se!" O "f" é arrastado como o bufar de um gato assanhado e a língua fica encostada aos dentes antes de explodir no "da" que acaba num "ssss" prolongado, uma explosão de consoantes. "Ffffoodddddda-sss!"

No autocarro apinhado os olhares convergem para a origem do praguejar. Não é um desabafo abafado, um discreto "dasss". É um grito de raiva e é para ser ouvido por toda a gente do autocarro e do mundo. A voz é de uma rapariga, nova, loura, magra, lá ao pé da porta de trás e que está furiosa, a explodir de raiva. "Tás-me a ver esta merda? Tás-me a ver esta ganda merda?" Olha em volta para ver se alguém partilha a sua raiva, a sua fúria, a sua frustração, talvez para ver se pode descarregar em alguém a zanga que ninguém percebe de onde vem nem ao que vai, mas os olhares que convergiram sobre ela desviam-se os centímetros necessários para evitar o contacto directo e adoptam um ar abstracto de circunstância. Será louca? É melhor não a olhar nos olhos. Ela bamboleia a cabeça, agressiva e desesperada, como uma fera encurralada, sem nada ali à mão para descarregar a sua fúria. Veste um vestidinho leve de manga curta, tem sacos na mão, está cansada e transpirada, é nova, muito nova, tem uma boca dura e infeliz, podia ser graciosa se a sua vida tivesse sido toda diferente e se esta viagem de autocarro fosse diferente, e é evidente que não sabe o que fazer à vida nem ao engarrafamento que não deixa o autocarro avançar. "Vamos perder a merda do autocarro." 

Então é isso. Há outro autocarro, lá à frente, a uns cem metros, que se aproxima da paragem, e ela vai perder a ligação. "Vais-me fazer perder a merda do 56!" Afinal não está louca. Está a gritar com o filho que está de pé ao seu lado, uns dois anos de idade, grande chucha na boca, cabelo penteado com risco ao lado, o olhar cravado num lugar indefinido como se não fosse nada com ele, com uma expressão neutra que deve ter aprendido que é a que mais lhe convém. De outra maneira, por que é que não olharia para a mãe, ali aos gritos ao seu lado? 

Lá à frente, o 56 aproxima-se da paragem. "Ó menos podia abrir a puta da porta!" O grito quase desesperado devia ser para o motorista, mas não é bem, ela sabe que, mesmo que o motorista abrisse a porta, nunca conseguiria correr aqueles cem metros com os sacos e a criança e chegar a tempo... O 56 pára lá à frente, parte. "Se eu fosse a pé tinha-o apanhado. Vais mazé passar a andar a pé, tás a ouvir? Que eu tamém ando a pé!" Os gritos agora dirigem-se directamente ao rapazinho, sempre com o olhar pregado num ponto à sua frente. Não se percebe como é que a rapariga iria apanhar o 56 se andasse a pé, mas o resto percebe-se bem.

Ela está lá ao fundo, apetece dizer para deixar de gritar com a criança, para gritar com o motorista, para partir um vidro, qualquer coisa, mas o autocarro avança, pára, ela desce com a criança com a chucha com o ódio ao mundo com o desespero. Tento segui-la com o olhar mas perco-a logo.

Cinco minutos antes a conversa tinha sido na parte da frente, um homem de uns setenta anos critica o mundo num vozeirão vibrante de barítono. A conversa começou por causa do autocarro e acaba nos males do país. "... E a Ferreira Leite, essa ladra, anda prà aí a dar casas aos estrangeiros, mas aos de cá não dá nada. Nada! Na Amadora há 20 mil a 30 mil pessoas que não pagam os impostos! São os da câmara que dizem! Mas a mim que trabalhei 52 anos, se me atraso um dia pago a multa, porque não sou lá dos deles, bandalhos. Há um que eu conheço que tem um prédio e recebe 3000 contos por mês de rendas. Tudo sem recibo! Bando de ladrões! Esse não paga impostos, mas o cidadão trabalhador se se atrasa está lixado." A voz tem vibratos de pregador e há um coro de murmúrios de assentimento que percorre o autocarro a cada frase, como améns numa igreja baptista. Os homens das sondagens não andam de autocarro. Foi por isso que se enganaram. Só olharam para os números. As pessoas estão furiosas. Infelizes e furiosas. Acho que foi por isso que, depois, ninguém disse à rapariga para não ralhar com a criança, todos percebiam a sua raiva. Onde estará a criança com a chucha? Jornalista (jvm@publico.pt)

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