quarta-feira, julho 01, 2009

Um marco para a civilização

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 1 de Julho de 2009
Crónica xxx/2009

Ninguém sabe como é mil milhões de pessoas com fome. Mil milhões de pessoas não são ninguém

Este ano, não se sabe exactamente em que dia, o mundo atinge um marco civilizacional: o número de pessoas que vivem com fome no planeta vai ultrapassar os mil milhões - um em cada seis seres humanos. Mais exactamente: segundo a Organização para a Alimentação e a Agricultura das Nações Unidas (FAO), no final deste ano deverá haver 1020 milhões de pessoas que não dispõem de comida suficiente para viver. A somar-se a estes, há mais 2000 milhões que sofrem de malnutrição.

Do ano passado para este, o número deu um salto de 100 milhões, acelerando a tendência que já se fazia sentir desde 1995. Nos anos 80 e na primeira metade dos anos 90, houve uma redução do número de pessoas com carência grave de alimentos, mas essa tendência sofreu uma inversão em meados dessa década e os números de pessoas com fome (e mortes por inanição) têm vindo a aumentar desde então. Note-se, como faz a FAO, que isto não se deve a falta de alimentos, que são cada vez mais abundantes. Deve-se à falta de dinheiro destas pessoas para comprar alimentos, agravada pela actual crise financeira - que reduz o crédito e as remessas de emigrantes. E ao facto de não possuírem capacidade autónoma de produção de alimentos devido à destruição da sua agricultura por opções políticas erradas, pela guerra, pela seca, pelas alterações climáticas, pela concorrência desleal da agricultura americana e europeia.

O triste cabo que dobramos este ano é particularmente irónico porque, em Setembro de 2000, os líderes mundiais, reunidos sob a égide das Nações Unidas, aprovaram uma Declaração que continha os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, onde se definiam metas concretas de combate à pobreza, à fome, à doença, à injustiça e à destruição do planeta entre as quais se encontrava a redução para metade até 2015 (em relação a 1990) do número de pessoas em situação de pobreza e fome extremas. E esta não foi a primeira vez que o mundo decidiu acabar com a fome. Em 1996, a Cimeira Mundial da Alimentação de Roma já tinha decidido reduzir os famintos a metade em 2015 e Jacques Diouf, que era e ainda é o director-geral da FAO, dizia na altura: "O objectivo está ao nosso alcance. Temos o conhecimento. Temos os recursos. E temos a vontade."

E ainda antes disto, na Conferência Mundial da Alimentação de 1974, o mundo já tinha até decidido acabar com a fome, a insegurança alimentar e a malnutrição "ao longo da década seguinte".

Apesar destas promessas, a fome mundial não deixou de alastrar: 825 milhões de famintos em 1995-97, 857 milhões em 2000-02, 873 milhões em 2004-06, 915 milhões em 2008, 1020 milhões este ano.

Há muitas maneiras de olhar para estes números, mas, pelo meu lado, gostaria que não olhássemos para os números. Ninguém sabe como é mil milhões de pessoas com fome. Mil milhões de pessoas não são ninguém. Não se pode conhecer mil milhões de pessoas, não se pode gostar de mil milhões de pessoas, não se pode sequer ver mil milhões de pessoas.

Pense apenas numa. Escolha uma.

Há muitas por onde escolher, ainda que os jornais e as televisões, para nossa vergonha, tenham mais gosto em publicar fotos de Paris Hilton do que uma só dos seis milhões de crianças que morrem por ano de fome. Um Holocausto por ano, um Holocausto infantil, a somar-se a outros, de homens e mulheres, um Holocausto indiferente, sem a honra de um memorial, sem protagonistas, sem ódios sequer, como se acontecesse apenas por obra do acaso, quando sabemos que se produz no mundo comida suficiente para cada uma destas crianças que deixamos morrer, quando sabemos que "temos o conhecimento e os recursos" para evitar que elas morram. Quando sabemos que até temos conhecimento e recursos suficientes para aumentar cada vez mais, de ano para ano, a riqueza dos mais ricos do planeta.

Pensemos, portanto, apenas numa delas. Por mim, vejo uma criança somali, uma coisinha de uma fragilidade extrema, de olhos cheios de surpresa, já para além da fome, ao colo da mãe, uma imagem cadavérica de dignidade, resignação e tristeza, coberta por um manto castanho, uma Pietà anónima, como uma de há dois mil anos, como qualquer uma das 16.000 que a fome vai fazer hoje. A legenda da fotografia, tirada nos anos 90, dizia que a criança tinha morrido logo depois de o fotógrafo ter feito a fotografia e sei que, de cada vez, lia a legenda com um misto de dor e de alívio.

Só sei que mil milhões é o sofrimento desta criança e desta mãe repetido sem fim, sem fim, sem alívio. Jornalista (jvm@publico.pt)

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