por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 20 de Agosto de 2013
Crónica 32/2013
O filho mais velho de Cláudia tem dez anos e acompanha a mãe e os dois irmãos mais pequenos à cantina social de Matosinhos. Levam sacos com recipientes vazios que vão levar para casa com o almoço da família. Pai e mãe estão desempregados e o subsídio de desemprego não chega para cobrir as despesas e comprar comida para todos. Ao entrar na cantina, o rapaz cruzou-se com um colega da escola, que deve ter percebido o que a família ia fazer. "Que vergonha!", disse o rapaz à mãe.
A história é contada numa reportagem de Ana Cristina Pereira, publicada há poucos dias nestas páginas, a par de um artigo de Andreia Sanches sobre o Programa de Emergência Alimentar. E nós não podemos senão repetir, como o filho mais velho de Cláudia, "Que vergonha!".
Que vergonha que o Governo de Passos Coelho esteja a mergulhar cada vez mais famílias na pobreza, a destruir os apoios sociais a que todos os cidadãos têm direito nos momentos de necessidade e para os quais todos contribuímos, e a substituí-los por humilhantes programas de caridade, onde os direitos se transformam em esmolas, onde a dignidade das pessoas é ofendida, onde a sua autonomia é negada, onde a sua perda de estatuto é ofensivamente reiterada dia após dia.
É infame que o ministro Mota Soares envergonhe o filho mais velho de Cláudia, uma criança de dez anos cujo único crime é ter pais desempregados. É infame que o ministro Mota Soares apenas aceite alimentar os filhos das Cláudias em troca da sua humilhação. Mas Mota Soares, que de facto é não só ministro para a Promoção da Miséria mas também grão-mestre da Humilhação dos Pobres, não se fica por aqui. Há todos os dias milhares e milhares de crianças que comem a sopa da caridade, sob o olhar envergonhado dos pais, e que rezam para que nenhum colega da escola os veja entrar numa cantina social ou entrar de sacos vazios e sair de sacos cheios de uma IPSS ou de um Centro Paroquial. Mota Soares pode achar esta vergonha despropositada em miseráveis, pode considerar que todos eles têm muita sorte por ter a sua sopinha grátis e pode até argumentar que seria pior se não a tivessem, mas a questão é que o Estado tem o dever de proteger os direitos das pessoas em geral e dos seus cidadãos mais frágeis em particular e que estas doações não são senão retribuições que a sociedade lhes deve - como no-las deve a cada um de nós em caso de necessidade porque todos contribuímos solidariamente uns para os outros. Mota Soares não percebe que o seu papel é gerir os recursos de todos de acordo com as políticas solidárias que a sociedade colectivamente sancionou e não impor um programa de submissão dos pobrezinhos para aterrorizar os trabalhadores e facilitar o ataque aos seus direitos. Mota Soares não percebe que as pessoas são todas iguais em direitos e dignidade e que não pode impor aos filhos dos mais pobres o que nunca admitiria que fosse imposto aos seus filhos. Mota Soares não percebe que está a vender a sua sopa a um preço demasiado alto.
Mota Soares não percebe que é abjecto organizar apoios sociais de uma forma que humilha os necessitados, que eterniza a sua dependência porque não lhes permite qualquer autonomia e que nem sequer é a mais eficiente.
Há 415.000 portugueses que vivem de alimentos doados, quer pelo Banco Alimentar contra a Fome quer pelas cantinas sociais do Programa de Emergência Alimentar. Se somarmos a estes os que são alimentados por organizações privadas que não estão ligadas àqueles programas e por indivíduos a título pessoal, o número excederá certamente o meio milhão. Meio milhão de pessoas que só podem comer todos os dias se forem pedir comida.
O Programa Alimentar de Emergência cresceu paralelamente à redução das prestações e do âmbito do rendimento social de inserção (RSI), que apoia cada vez menos pessoas apesar do evidente aumento das necessidades, mas todos os especialistas consideram que um grande alargamento do RSI seria a medida mais justa, mais respeitadora da dignidade das pessoas, mais promotora da sua autonomia e até mais benéfica para a economia nacional. Porque é que o Governo gosta de distribuir sopa mas reduz o RSI? Porque o RSI proporciona uma autonomia que o Governo não quer promover. O RSI serve para fazer sopa ou para um bilhete de autocarro. A sopa é só sopa. Não permite veleidades.
Usando habilmente de uma propaganda sem escrúpulos, o Governo e a direita em geral conseguiram difundir a ideia de que o RSI promovia a preguiça e atrofiava a iniciativa, além de gastar recursos gigantescos. Era e é mentira, mas a campanha ajudou a estabelecer a sopa dos pobres como modelo social alternativo.
Mota Soares prefere dar sopa e anunciar que os pobres podem fazer bicha para a sopa. "É bom para o Governo e para a alma", sonha Mota Soares. "É maravilhoso ter muitos pobres a quem dar sopa, porque quem dá sopa aos pobres pratica a caridade e quem pratica a caridade está na graça de Deus." É por isso que Mota Soares exulta com a sopa dos pobres. Por isso e porque sabe que na bicha da sopa só estarão os filhos dos outros. (jvmalheiros@gmail.com)
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terça-feira, agosto 20, 2013
terça-feira, abril 24, 2012
Da fome, do desperdício e da tristeza
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 24 de Abril de 2012
Crónica 17/2012A letra do hino da campanha Zero Desperdício é (para ser benevolente) profundamente infeliz
Na semana passada, a difusão na Internet de um vídeo do hino da campanha Zero Desperdício, no qual participaram alguns dos mais talentosos músicos da nossa praça, levantou uma compreensível onda de protestos. A letra do hino, da autoria de Tim, é (para ser benevolente) profundamente infeliz, dizendo, a certa altura, “o que eu não aproveito ao almoço e ao jantar / a ti deve dar jeito, temos que nos encontrar”. Devo dizer que, quando li uma parte da letra que alguém pôs a circular na Web, tive a certeza de que se tratava de uma sátira. Quando vi, pareceu-me uma das coisas mais tristes que já me foi dado ver. É chocante a ausência de consideração pela dignidade das pessoas destinatárias da campanha, é chocante a naturalidade com que se encara o facto de umas pessoas viverem das sobras de outras, é chocante a maneira como esta desigualdade é travestida de solidariedade, é chocante o facto de os participantes na campanha não terem sentido nada disto.
Os erros acontecem e é possível que ninguém se tivesse dado conta de que o hino tinha esta leitura. Mas, nesse caso, alguma sensibilidade teria aconselhado a imediata retirada do vídeo e um pedido de desculpas mal a reacção surgiu. É triste que isso não tenha acontecido.
Mas a campanha Zero Desperdício merece outras considerações.
Vale a pena reflectir sobre a expressão “desperdício alimentar”, cujo combate é apresentado pela campanha como o seu objectivo número um. “Pôr fim ao desperdício” é apresentado como a missão da campanha e “Portugal não se pode dar ao lixo” é o seu slogan.
Repare-se que o problema identificado não é a “fome” ou a “carência alimentar” nem a missão “dar de comer a quem tem fome” ou algo do género. A actividade desenvolvida também não é apresentada primordialmente como uma acção de “solidariedade” nem sequer de “ajuda” ou “assistência” (expressões não isentas de carga negativa, pelo paternalismo e desigualdade que lhes está associado, mas certamente defensáveis). Repare-se na diferença entre este “pôr fim ao desperdício” e o nome do Banco de Ajuda Alimentar, claramente apresentado como assistencial, e cuja razão de ser, assumida sem ambiguidades, é melhorar as condições de vida dos destinatários da sua ajuda. Repare-se na diferença entre este “pôr fim ao desperdício” e os famosos Restos du Coeur, criados pelo humorista francês Coluche e cuja designação é, em si, um grito solidário (estes “Restos” são a abreviatura de “Restaurantes” e não os restos do almoço e do jantar).
Toda a campanha do Zero Desperdício coloca, pelo contrário, a tónica “do lado da oferta”. Toda a iniciativa é “supply-side economics”. Tudo é apresentado como se fosse o facto de haver desperdício de alimentos que justifica a campanha e as acções dos dadores e não o facto de haver pessoas com fome. Mais: o facto de haver desperdícios parece até positivo, já que permite que os pobres beneficiem das sobras, num exemplo perfeito de “trickle-down economics”. O racional da campanha parece ser e poderia ser: “Já que esta comida ia para o lixo, vamos dá-la aos pobres”. É evidente que o desperdício de alimentos é intolerável, mas o que motiva a acção solidária não pode deixar de ser o combate à fome e a pobreza e às suas causas - e este objectivo, um claro imperativo ético, não pode ser deixado diplomaticamente de lado, para não ofender os poderes por chamar a atenção para a política de empobrecimento a que o país está a ser submetido. Há um dever de denúncia que é inalienável e indeclinável.
É evidente que o “combate ao desperdício” - objectivo razoável em termos gerais, mas moralmente neutro - se insere bem no discurso ideológico caro ao Governo e à direita e se alinha com os apelos à produtividade e à competitividade, enquanto que o “combate à pobreza” tem tonalidades que o Governo, o Presidente da República, os partidos da direita e os grandes patrões não apreciam. Cheira a socialismo, a comunismo, a direitos humanos, aquelas coisas que a direita portuguesa abomina. Mas aquilo a que a simples solidariedade humana nos obriga é a partilhar, de forma a acabar com a fome, independentemente de haver ou não desperdício.
É possível que os autores da campanha “Zero desperdício” tenham decidido não realçar nos seus documentos as expressões “fome” nem“combate à pobreza” (pelas suas tonalidades de esquerda) e falar apenas de “redução do desperdício” (pelas suas tonalidades de direita). Pode ter sido uma astuta decisão de marketing político, uma decisão pragmática de quem sabe que o PSD e o CDS têm a maioria em Portugal. Mas, se o foi, a decisão aceita o pressuposto de que algo tão básico como o combate à fome, tão central nos direitos humanos, deve ser posto de lado devido à sua pretensa tintagem política e deve ser substituído por algo mais aceitável nos salões, algo que cheire a promoção da eficiência empresarial. O que seria triste. (jvmalheiros@gmail.com)
quarta-feira, julho 01, 2009
Um marco para a civilização
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 1 de Julho de 2009
Crónica xxx/2009
Ninguém sabe como é mil milhões de pessoas com fome. Mil milhões de pessoas não são ninguém
Este ano, não se sabe exactamente em que dia, o mundo atinge um marco civilizacional: o número de pessoas que vivem com fome no planeta vai ultrapassar os mil milhões - um em cada seis seres humanos. Mais exactamente: segundo a Organização para a Alimentação e a Agricultura das Nações Unidas (FAO), no final deste ano deverá haver 1020 milhões de pessoas que não dispõem de comida suficiente para viver. A somar-se a estes, há mais 2000 milhões que sofrem de malnutrição.
Do ano passado para este, o número deu um salto de 100 milhões, acelerando a tendência que já se fazia sentir desde 1995. Nos anos 80 e na primeira metade dos anos 90, houve uma redução do número de pessoas com carência grave de alimentos, mas essa tendência sofreu uma inversão em meados dessa década e os números de pessoas com fome (e mortes por inanição) têm vindo a aumentar desde então. Note-se, como faz a FAO, que isto não se deve a falta de alimentos, que são cada vez mais abundantes. Deve-se à falta de dinheiro destas pessoas para comprar alimentos, agravada pela actual crise financeira - que reduz o crédito e as remessas de emigrantes. E ao facto de não possuírem capacidade autónoma de produção de alimentos devido à destruição da sua agricultura por opções políticas erradas, pela guerra, pela seca, pelas alterações climáticas, pela concorrência desleal da agricultura americana e europeia.
O triste cabo que dobramos este ano é particularmente irónico porque, em Setembro de 2000, os líderes mundiais, reunidos sob a égide das Nações Unidas, aprovaram uma Declaração que continha os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, onde se definiam metas concretas de combate à pobreza, à fome, à doença, à injustiça e à destruição do planeta entre as quais se encontrava a redução para metade até 2015 (em relação a 1990) do número de pessoas em situação de pobreza e fome extremas. E esta não foi a primeira vez que o mundo decidiu acabar com a fome. Em 1996, a Cimeira Mundial da Alimentação de Roma já tinha decidido reduzir os famintos a metade em 2015 e Jacques Diouf, que era e ainda é o director-geral da FAO, dizia na altura: "O objectivo está ao nosso alcance. Temos o conhecimento. Temos os recursos. E temos a vontade."
E ainda antes disto, na Conferência Mundial da Alimentação de 1974, o mundo já tinha até decidido acabar com a fome, a insegurança alimentar e a malnutrição "ao longo da década seguinte".
Apesar destas promessas, a fome mundial não deixou de alastrar: 825 milhões de famintos em 1995-97, 857 milhões em 2000-02, 873 milhões em 2004-06, 915 milhões em 2008, 1020 milhões este ano.
Há muitas maneiras de olhar para estes números, mas, pelo meu lado, gostaria que não olhássemos para os números. Ninguém sabe como é mil milhões de pessoas com fome. Mil milhões de pessoas não são ninguém. Não se pode conhecer mil milhões de pessoas, não se pode gostar de mil milhões de pessoas, não se pode sequer ver mil milhões de pessoas.
Pense apenas numa. Escolha uma.
Há muitas por onde escolher, ainda que os jornais e as televisões, para nossa vergonha, tenham mais gosto em publicar fotos de Paris Hilton do que uma só dos seis milhões de crianças que morrem por ano de fome. Um Holocausto por ano, um Holocausto infantil, a somar-se a outros, de homens e mulheres, um Holocausto indiferente, sem a honra de um memorial, sem protagonistas, sem ódios sequer, como se acontecesse apenas por obra do acaso, quando sabemos que se produz no mundo comida suficiente para cada uma destas crianças que deixamos morrer, quando sabemos que "temos o conhecimento e os recursos" para evitar que elas morram. Quando sabemos que até temos conhecimento e recursos suficientes para aumentar cada vez mais, de ano para ano, a riqueza dos mais ricos do planeta.
Pensemos, portanto, apenas numa delas. Por mim, vejo uma criança somali, uma coisinha de uma fragilidade extrema, de olhos cheios de surpresa, já para além da fome, ao colo da mãe, uma imagem cadavérica de dignidade, resignação e tristeza, coberta por um manto castanho, uma Pietà anónima, como uma de há dois mil anos, como qualquer uma das 16.000 que a fome vai fazer hoje. A legenda da fotografia, tirada nos anos 90, dizia que a criança tinha morrido logo depois de o fotógrafo ter feito a fotografia e sei que, de cada vez, lia a legenda com um misto de dor e de alívio.
Só sei que mil milhões é o sofrimento desta criança e desta mãe repetido sem fim, sem fim, sem alívio. Jornalista (jvm@publico.pt)
Texto publicado no jornal Público a 1 de Julho de 2009
Crónica xxx/2009
Ninguém sabe como é mil milhões de pessoas com fome. Mil milhões de pessoas não são ninguém
Este ano, não se sabe exactamente em que dia, o mundo atinge um marco civilizacional: o número de pessoas que vivem com fome no planeta vai ultrapassar os mil milhões - um em cada seis seres humanos. Mais exactamente: segundo a Organização para a Alimentação e a Agricultura das Nações Unidas (FAO), no final deste ano deverá haver 1020 milhões de pessoas que não dispõem de comida suficiente para viver. A somar-se a estes, há mais 2000 milhões que sofrem de malnutrição.
Do ano passado para este, o número deu um salto de 100 milhões, acelerando a tendência que já se fazia sentir desde 1995. Nos anos 80 e na primeira metade dos anos 90, houve uma redução do número de pessoas com carência grave de alimentos, mas essa tendência sofreu uma inversão em meados dessa década e os números de pessoas com fome (e mortes por inanição) têm vindo a aumentar desde então. Note-se, como faz a FAO, que isto não se deve a falta de alimentos, que são cada vez mais abundantes. Deve-se à falta de dinheiro destas pessoas para comprar alimentos, agravada pela actual crise financeira - que reduz o crédito e as remessas de emigrantes. E ao facto de não possuírem capacidade autónoma de produção de alimentos devido à destruição da sua agricultura por opções políticas erradas, pela guerra, pela seca, pelas alterações climáticas, pela concorrência desleal da agricultura americana e europeia.
O triste cabo que dobramos este ano é particularmente irónico porque, em Setembro de 2000, os líderes mundiais, reunidos sob a égide das Nações Unidas, aprovaram uma Declaração que continha os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, onde se definiam metas concretas de combate à pobreza, à fome, à doença, à injustiça e à destruição do planeta entre as quais se encontrava a redução para metade até 2015 (em relação a 1990) do número de pessoas em situação de pobreza e fome extremas. E esta não foi a primeira vez que o mundo decidiu acabar com a fome. Em 1996, a Cimeira Mundial da Alimentação de Roma já tinha decidido reduzir os famintos a metade em 2015 e Jacques Diouf, que era e ainda é o director-geral da FAO, dizia na altura: "O objectivo está ao nosso alcance. Temos o conhecimento. Temos os recursos. E temos a vontade."
E ainda antes disto, na Conferência Mundial da Alimentação de 1974, o mundo já tinha até decidido acabar com a fome, a insegurança alimentar e a malnutrição "ao longo da década seguinte".
Apesar destas promessas, a fome mundial não deixou de alastrar: 825 milhões de famintos em 1995-97, 857 milhões em 2000-02, 873 milhões em 2004-06, 915 milhões em 2008, 1020 milhões este ano.
Há muitas maneiras de olhar para estes números, mas, pelo meu lado, gostaria que não olhássemos para os números. Ninguém sabe como é mil milhões de pessoas com fome. Mil milhões de pessoas não são ninguém. Não se pode conhecer mil milhões de pessoas, não se pode gostar de mil milhões de pessoas, não se pode sequer ver mil milhões de pessoas.
Pense apenas numa. Escolha uma.
Há muitas por onde escolher, ainda que os jornais e as televisões, para nossa vergonha, tenham mais gosto em publicar fotos de Paris Hilton do que uma só dos seis milhões de crianças que morrem por ano de fome. Um Holocausto por ano, um Holocausto infantil, a somar-se a outros, de homens e mulheres, um Holocausto indiferente, sem a honra de um memorial, sem protagonistas, sem ódios sequer, como se acontecesse apenas por obra do acaso, quando sabemos que se produz no mundo comida suficiente para cada uma destas crianças que deixamos morrer, quando sabemos que "temos o conhecimento e os recursos" para evitar que elas morram. Quando sabemos que até temos conhecimento e recursos suficientes para aumentar cada vez mais, de ano para ano, a riqueza dos mais ricos do planeta.
Pensemos, portanto, apenas numa delas. Por mim, vejo uma criança somali, uma coisinha de uma fragilidade extrema, de olhos cheios de surpresa, já para além da fome, ao colo da mãe, uma imagem cadavérica de dignidade, resignação e tristeza, coberta por um manto castanho, uma Pietà anónima, como uma de há dois mil anos, como qualquer uma das 16.000 que a fome vai fazer hoje. A legenda da fotografia, tirada nos anos 90, dizia que a criança tinha morrido logo depois de o fotógrafo ter feito a fotografia e sei que, de cada vez, lia a legenda com um misto de dor e de alívio.
Só sei que mil milhões é o sofrimento desta criança e desta mãe repetido sem fim, sem fim, sem alívio. Jornalista (jvm@publico.pt)
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