terça-feira, junho 02, 2009

Alexandra T. e as maçãs podres

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 2 de Junho de 2009
Crónica xxx/2009


Como é possível que este arrogante e ignorante sistema de "Justiça" continue a produzir tantas maçãs podres?

Não é preciso ser perito em fruticultura para saber o que é uma maçã podre. Quando damos uma dentada numa maçã podre, mesmo que um grupo de doutores em ciências agrárias nos tente provar que aquela maçã está sã como um pêro, nós sabemos que não está.


Os peritos em fruticultura não sabem melhor do que nós o que é uma maçã podre. A grande diferença é que eles sabem (ou esperamos que saibam) como é que se faz para produzir maçãs de primeira classe.

Da mesma forma, não é preciso ser um especialista em Direito ou um profundo conhecedor do funcionamento do sistema judicial para saber o que é a justiça. É como com as maçãs: podemos não saber como se cultivam aquelas maçãs rijas e aromáticas, mas quando vemos uma maçã podre... sabemos de ciência certa que está podre. Não vale a pena tentar disfarçar.

O problema com a chamada Justiça (a maiúscula é para sublinhar a diferença com a comum justiça) em Portugal é que produz demasiadas maçãs podres. Há quem continue a dizer que o nosso sistema judicial "atravessa uma crise" mas que "a Justiça funciona". Nenhuma das frases é correcta. Se a Justiça estivesse a atravessar uma crise, isso seria uma excelente notícia. O problema é que está parada no meio da crise e já criou raízes.
Os exemplos são inúmeros, dos grandes casos aos pequenos. Nos grandes, as coisas arrastam-se e vão-se complicando à medida que os processos se arrastam - em vez de se esclarecerem, como parece que deveria ser a função do sistema -, tornando qualquer perspectiva impossivelmente obscura. Nos pequenos casos, percebemos melhor que não percebemos nada. Um velho advogado dizia-me há anos que, em Portugal, era impossível prever o desfecho de um processo: já tinha visto imensas pessoas limpidamente inocentes ser condenadas e grandes e óbvios gabirus inocentados. Mas acrescentava (para me descansar, suponho) que não era tudo exactamente ao contrário do que devia ser, que às vezes o sistema funcionava: era mais como deitar uma moeda ao ar.

O que é curioso é que muitos dos responsáveis pela administração da justiça em Portugal partilham esta visão catastrófica em privado - ainda que não a admitam em público. Uma hipocrisia que não é de molde a descansar ninguém.

O último episódio desta farsa em contínuo foi a retirada da menina de Barcelos, Alexandra T., da tutela do casal que a cuidava desde os 17 meses e a sua entrega à mãe biológica que a levou para a Rússia. O juiz da Relação de Guimarães já concedeu que pode não ter feito a escolha mais acertada, mas escudou-se com "os factos constantes do processo", que não permitiriam outra interpretação. E isso é que é espantoso, porque "os factos constantes do processo", se dizem alguma coisa, por trás do português canhestro que se usa nos tribunais e dos visíveis preconceitos de quem o escreve, é que esta criança foi abandonada pela mãe, que a descuidou grave e sistematicamente, e que o casal que a acolheu a tratou bem e que a criança os amava como pai e mãe. Como é possível que um especialista da lei não saiba ler esta história que, se fosse um conto, qualquer criança de seis anos perceberia? Como é possível que, em vez de justiça, este arrogante e ignorante sistema de "Justiça" continue a produzir tantas maçãs podres e a condenar crianças a cumprir as penas que apenas os juízes deveriam cumprir? Jornalista (jvm@publico.pt)

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