Texto publicado no jornal Público a 1 de Novembro de 2011
Crónica 44/2011
Mesmo sem uma solução chave na mão para substituir o capitalismo, é essencial combater as suas indignidades e os seus crimes
Nestes tempos onde os malefícios do capitalismo financeiro e a falta de escrúpulos da oligarquia económica e política se tornaram evidentes, com o seu rasto de miséria e acumulação obscena de lucros, é frequente ouvirmos repetir slogans contra o capitalismo.
O “fim do capitalismo” surge como uma evidência até nas conferências de insuspeitos conservadores, ainda que matizado pela adenda “tal como o conhecemos” ou algo semelhante. Mas que existe uma crise não apenas financeira e não apenas conjuntural, que é do próprio capitalismo, é algo que ninguém de boa fé pode deixar de ver.
Pela minha parte, nunca defendi a destruição do capitalismo pela simples razão de que nunca tive uma noção clara do que poria no seu lugar – sendo certo que certas opções me pareciam moralmente inaceitáveis, economicamente ineficazes ou politicamente perversas ou tudo isso ao mesmo tempo.
Simpatizo com a ideia de mercado e de concorrência. Gosto de pensar que, se dois produtores vão vender maçãs ao mercado, o que tiver melhores maçãs ou o que tiver melhores preços terá mais sucesso que o outro, com o consequente benefício para a sociedade. Mas sempre me pareceu evidente que nem tudo deve ser decidido pelo mercado, que existem bens que devem ser disponibilizados a todos pela comunidade, independentemente de os seus beneficiários os poderem ou não comprar, porque o seu usufruto é a condição de uma vida digna. E nunca me pareceu aceitável que, em nome da concorrência, o produtor das melhores maçãs condenasse o seu concorrente à miséria e à fome. E, já agora, sempre me pareceu injusto que o sistema – fazendo jus ao seu nome mas contrariando as regras da competição – permitisse que quem dispunha de mais capital, mesmo que produzisse as piores maçãs, encontrasse forma de as vender mais depressa e mais caras que o seu concorrente.
Na minha simpatia pelo mercado, curiosamente ou não, sempre me senti a milhas de distância dos “defensores do mercado” que, principalmente quando são empresários, sonham acima de tudo em encontrar formas de pôr fim à concorrência, em tentar impor um monopólio, em garantir um mercado protegido, em negociar um cartel, em escamotear a informação de que os clientes necessitam para fazer escolhas ou a usar de outros truques para contornar as regras do mercado.
Posto isto, é evidente que existe um limite para além do qual a concorrência é indesejável. Em que o seu império acaba por destruir o tecido em que assenta a vida em sociedade.
É por isso que, apesar de não ter uma solução chave na mão para substituir o capitalismo, sempre me pareceu essencial combater as suas indignidades e os seus crimes. Se, uma vez corrigidos esses erros, no final tivermos algo que não se chama capitalismo, isso é para mim relativamente indiferente – ainda que fizesse sentido que se chamasse outra coisa e que essa outra coisa fosse socialismo. Mas o que é fundamental é o que o sistema faz – o que faz e permite às pessoas – e não como se chama.
De todos os seus erros e crimes, há algo que o capitalismo fez às pessoas que não pode deixar de ser identificado como um mal nuclear: o facto de nos ter imposto a ideia de que não só os produtos e os serviços mas também as pessoas devem concorrer entre si e que, os que perderem, devem ser descartados, excluídos e punidos. Não por maldade, mas em nome da qualidade. Em nome da produtividade e da eficiência. Em nome da selecção dos melhores.
Esta ideia, eugenista por excelência, tecnocrata por excelência (tecnocrata é, simplesmente, anti-humanista) está na base da destruição da solidariedade que hoje, meticulosamente, temos de voltar a tecer, fio a fio. (jvmalheiros@gmail.com)
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