por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 22 de Novembro de 2011
Crónica 47/2011
Ninguém elegeu as agências de rating, ninguém elegeu a troika, ninguém elegeu “os mercados”, ninguém elegeu o directório Merkozy
As declarações de Otelo Saraiva de Carvalho sobre a possibilidade de as Forças Armadas portuguesas lançarem “uma operação militar e derrubarem o Governo” foi recebida com a esperada vaga de escândalo, com protestos de respeito pela legalidade democrática por parte da hierarquia militar e com as habituais críticas à pessoa de Otelo. Não faltou mesmo quem aventasse a possibilidade de Otelo ser acusado criminalmente por “incitamento à alteração violenta do Estado de Direito”. Otelo, pelo seu lado, avançou mesmo uns cálculos logísticos feitos nas costas de um envelope. Na sua opinião, o golpe seria hoje até mais fácil do que em 1974, pelo facto de haver agora menos quartéis, e bastariam para o levar a cabo “800 homens”.
O frisson unânime dos comentadores poderia dar a ideia de que existe na sociedade portuguesa uma viva e unânime repulsa pela ideia de um golpe de Estado. Mas basta passearmo-nos um pouco pelos comentários de blogues e jornais ou fazer esse exercício que se chama “andar nos transportes públicos”, para percebermos que não é assim. De facto, a degradação do país, o desemprego crescente, a destruição sistemática dos progressos dos últimos anos, a injustiça social e a desigualdade, com o enraizamento dos privilégios de uns e da pobreza de outros e a frustração pela sua situação pessoal conseguiram já levar um número considerável de pessoas ao chamado “ponto de rebuçado”.
Uma maioria de pessoas detestava o anterior Governo. Elegeu outro. Mas, neste momento, penso que a maioria das pessoas não estará satisfeita com este. Mas não se trata de uma mudança brusca de opinião. Não estou a dizer que, se houvesse hoje eleições, o povo escolheria o PS. Ou o PCP ou o Bloco. É até possível que reelegesse o PSD+CDS. Mas a questão é que o actual quadro político já não merece a confiança, a concordância, nem sequer a esperança de uma parte considerável da população. A abstenção é um reflexo evidente disso, mas essa desesperança, o desinvestimento, a descrença e até a animosidade contra o actual sistema político existem igualmente em muitos votantes. A maioria absoluta, hoje, pertence aos descrentes e aos indignados. Quando Otelo diz que, se forem ultrapassados os limites, os militares devem derrubar o Governo, está a ecoar a frustração de muitos portugueses. Que a proposta seja inconsequente não muda o fundo da questão.
Quando as pessoas dizem que é preciso “outro 25 de Abril” estão simplesmente a enunciar a sua insatisfação com a actual situação, que nem lhes garante justiça social nem democracia – como o regime de Marcelo Caetano, ainda que as razões e a circunstância sejam diferentes. É claro que sempre houve pessoas a dizer que “isto só lá vai a tiro”. Mas, se há uns anos encontravam a indiferença como resposta, hoje temos gente a assentir ou a considerar a possibilidade.
Seria interessante saber que medidas tomariam os militares, após o golpe de Otelo, para garantir a verdadeira democracia que hoje não temos (uma ditadura militar? Proibir os partidos? Obrigá-los a refundar-se? Democracia directa?) mas penso que no inconsciente colectivo “o novo 25 de Abril” é apenas um Dilúvio destinado a eliminar uma geração de políticos, esperando simplesmente que os próximos aprendessem com a lição. Se até Deus perdeu a paciência, por que não simples mortais?
Por outro lado, se é fácil ridicularizar as tiradas de Otelo, todos ouvimos com circunspecção e assentimento as declarações de Soares (entre muitos outros respeitados políticos) quando diz que a "democracia pode vir a ser posta em causa" pelas “exigências dos mercados especulativos e desregulados” e quando escreve que Portugal está a ser "vítima da ganância dos mercados especulativos e da audácia criminosa das agências de rating".
As armas de eleição são diferentes, mas tanto Otelo como Soares repetem que a democracia pode estar em perigo. E que temos estado a perder democracia nos últimos trinta anos, com a soberania do povo a ser ilegitimamente transferida para a Goldman Sachs, é hoje uma evidência.
As liberdades de que gozamos hoje, e que formam o núcleo da democracia que consideramos o menos imperfeito dos regimes políticos, foram conquistadas em grande medida pela violência. Violência contra Governos ditatoriais, ilegítimos, que não representavam o povo. Foi assim da Revolução Francesa à luta contra o apartheid sul-africano. Outras foram ganhas sem violência revolucionária mas com sacrifícios de milhares, como a luta pelos direitos dos negros nos EUA. Mas a violência possui um papel político essencial.
Nos países democráticos, aceitamos que o uso da violência é uma prerrogativa exclusiva do Estado. Mas isso apenas é assim porque existem meios para o povo – único soberano – se exprimir e fazer valer a sua vontade. Porque o Estado emana do povo. E quando esses mecanismos não existem? Quando um povo elege um partido com base num programa que é pervertido a partir do primeiro minuto? Quando existe uma situação de dependência externa? Quando existe uma situação de “ditadura financeira” para usar a expressão, tristemente rigorosa, da igreja católica? Ninguém elegeu as agências de rating, ninguém elegeu a troika, ninguém elegeu “os mercados”, ninguém elegeu o directório Merkozy, ninguém elegeu sequer Durão Barroso.
Cada vez mais vivemos como uma colónia dos “mercados financeiros”. E aproximamo-nos de uma situação de “taxation without representation”, similar à que desencadeou a Revolução Americana. (jvmalheiros@gmail.com)
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