terça-feira, novembro 15, 2011

A Alemanha abriu alegremente a caixa de Pandora

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 15 de Novembro de 2011
Crónica 46/2011

Precisamos de um discurso europeu alternativo, democrático e transnacional

Sempre ouvimos dizer que a União Europeia (e a Comunidade Económica Europeia que a precedeu, e a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço que a precedeu) tinha sido criada, antes de mais, para garantir que uma guerra europeia não se voltaria a repetir. O francês Robert Schuman, criador da CECA e geralmente considerado o “pai da Europa”, dizia que a ideia por trás da criação da organização era tornar a guerra “não só impensável, mas materialmente impossível”. Que guerra? A guerra com a Alemanha, claro, país que tinha estado na origem de dois conflitos à escala continental e cuja ambição imperialista sempre foi difícil conter.

Basta ler qualquer relato de qualquer uma das duas guerras europeias para perceber a motivação dos europeus, nos anos 50 do século passado, em prol da paz. Devido à sua proximidade temporal e à sua maior presença na ficção e no cinema sabemos mais coisas sobre a Segunda Guerra Mundial, mas a Grande Guerra, se foi menos mortífera, não foi menos traumática à época – e muitos dos cidadãos europeus que estavam vivos quando Schuman propôs a CECA lembravam-se de ambas.

É claro que evitar a guerra parece um objectivo importante e sensato. Tão importante e sensato que todos os países (ou quase) e todos os políticos (ou quase) o colocam no topo da sua agenda. Mas também tão óbvio e omnipresente que geralmente nos esquecemos que ele lá está, já que o objectivo parece garantido à partida e para sempre. Quem poderia ser estúpido ao ponto de querer uma nova guerra? Quando dizemos a jovens europeus que o principal objectivo da EU era (e é) evitar a guerra olham-nos como se tivéssemos acabado de chegar de Qo'noS (é o planeta dos Klingons). Guerra na Europa? Só os pais da geração que está hoje na meia-idade se recordam da última guerra europeia (ainda que as guerras coloniais ainda estejam bem vivas). A guerra é algo que acontece em África, no Médio Oriente, na Ásia Menor, não na Europa. A guerra não faz parte da sua história, da sua memória, não está nas suas referências. A guerra é história passada. E no entanto…

Há inúmeras teorias para explicar porque é que as guerras acontecem, mas a existência de uma forte animosidade entre dois ou mais países é uma condição necessária. E uma das coisas que a actual crise financeira tem de surpreendente é – para além da criminosa falta de vontade dos líderes europeus em resolver os problemas existentes – a forma como a Alemanha parece apostada (Selbsthass?) em despertar velhas animosidades e em tirar dos armários todos os cadáveres que ela se empenhou durante as duas últimas gerações em fazer esquecer. Eles aí estão, à luz do dia, em toda a sua aterradora corrupção. E são uma fila infindável de cadáveres.

A caixa de Pandora foi aberta com os comentários xenófobos que não só invadiram os jornais populares alemães como o discurso político desse país e o da chanceler em particular. Comentários inseridos num discurso paternalista e disciplinador e avançados com uma pose de superioridade moral e de árbitro de facto da Europa. O que acontece é que nada na história da Alemanha lhe permite estas veleidades. Nada na sua prática política ou na forma como enriqueceu lhe concede o estatuto de árbitro da moral ou de fiel da economia. E menos ainda lhe confere o poder ditatorial de impor as mudanças de Governo que lhe agradam nos países a quem empresta dinheiro.
A arrogância alemã relativamente aos países preguiçosos e corruptos do sul, que mentem e não honram as suas dívidas e que não merecem a democracia, não podia deixar de trazer à tona algo que a Alemanha tentou fazer esquecer e que, por uma mistura de interesse e de generosidade (que Berlim toma por fraqueza), os países que a Alemanha atacou e ocupou na última guerra fingiram também esquecer: a questão das reparações de guerra, nunca completamente pagas, nomeadamente à Grécia; a devolução das obras de arte roubadas pelos nazis mas que a Alemanha democrática se foi esquecendo de devolver; as indemnizações pelos doze milhões de trabalhadores escravos que enriqueceram duas mil empresas alemãs - muitas das quais ainda hoje florescem sobre essa herança macabra e que foi sempre vergonhosamente minimizada (o chanceler Gerhard Schroder, quando anunciou em 1999 a criação de um fundo de 1700 milhões de dólares para compensar uma parte dos antigos escravos considerou as exigências de reparação uma ”campanha contra a Alemanha”...).
Perante as exigências alemãs, é evidente que é conveniente refrescar a memória de Berlim e lembrar que dívidas a pagar há-as por todo o lado.
Mas se isso pode ser usado como tentativa de reality check para uma Alemanha que caminha mais uma vez orgulhosamente para o abismo, é mais urgente evitar o caminho que a Europa não quer trilhar de novo. É essencial que as forças políticas europeias a quem as acções do directório europeu repugnam por razões morais, políticas e económicas, se entendam e apontem uma via alternativa comum.
Têm sido apresentadas alternativas, mas apenas por forças nacionais ou pessoas isoladas. É absolutamente fundamental que essa alternativa seja apresentada por uma corrente transnacional, que envolva se possível forças políticas de todos os países da UE - “onde está a social-democracia europeia?”, perguntava ontem o ensaísta Jon Bloomfield num artigo do “Social Europe Journal” - para evitar que o nacionalismo que se começa a enquistar no discurso político abafe por completo o ideal da cooperação europeia.
Se isso não acontecer, o sentimento que vai ficar na caixa de Pandora quando a conseguirmos finalmente fechar não vai ser a esperança. (jvmalheiros@gmail.com)

1 comentário:

Anónimo disse...

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