terça-feira, outubro 18, 2011

Pagar para ver

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 18 de Outubro de 2011
Crónica 42/2011

Não estamos a fazer sacrifícios em nome de nada. Estamos apenas a pagar a agiotas e a repor desfalques.

“Não pagamos! Não pagamos!” Um grupo de jovens repete o slogan, sublinhando cada grito em instrumentos de percussão improvisados, mas sem conseguir arrebatar os manifestantes que estão a mais de dois ou três metros. Estão cheios de energia, como muitos outros grupos de jovens que integram a manifestação dos indignados de Lisboa, mas a inconsequência da palavra de ordem é… gritante.

Como se faz para não pagar o IRS que é “retido na fonte”? Ou o IVA dos combustíveis ou do almoço? O passe social? Ou os subsídios de férias e de Natal? Ou o BPN? Ou os estádios do Euro 2004? Ou o juro agiota dos empréstimos internacionais? Como se faz para “não pagar” o dinheiro que é rapado das pensões, cortado das bolsas, subtraído às prestações sociais? 

Não há desobediência civil que funcione. Não se trata de serviços que podemos ou não adquirir. Os impostos são extorquidos aos cidadãos, por definição. A sua legitimidade advém do facto de serem decretados por Governos e Parlamentos eleitos democraticamente, para serem usados em obras para benefício colectivo e de o seu uso ser escrutinado pelo povo e por instâncias de inspecção, fiscalização e regulação – cujos regulamentos também são feitos em nosso nome. Mas… e quando esses órgãos eleitos democraticamente não usam os impostos em obras de interesse público? E quando as instâncias de inspecção, de regulação e sanção não inspeccionam, nem regulam nem sancionam?

O que fazer quando nos dizem que devemos sem sabermos como nem porquê nem a quem nem quanto? Quando nos dizem que devemos porque, quando pagámos pontualmente as mensalidades da nossa hipoteca, estávamos a viver acima das nossas possibilidades? Quando nos dizem que o país estaria bem, mesmo com o buraco da Madeira e as empresas que fogem ao fisco e o BPN e o BPP, mesmo com os brindes à banca e as luvas às construtoras e as prendas aos partidos, mesmo com os estádios e o dinheiro que voou para a Suíça se ao menos a menina Leopoldina não tivesse comprado aquela semana de férias nas Caraíbas com o cartão de crédito? O que responder quando nos dizem que o nosso problema é que os trabalhadores portugueses ganham demasiado bem? O que responder quando nos dizem que o Estado paga demasiado aos pensionistas? O que fazer quando o Estado nos diz que o problema é o Estado Social? Quando o Estado nos diz que está certo cobrar impostos e entregá-los aos mais ricos mas está errado apoiar os necessitados? 

Neste caso, no nosso caso, o que gritar? “Não pagamos”? Não chega e é de mais. É de mais porque, de facto, pagamos. E não chega porque não é nada.

Eu vou ter de pagar, queira ou não queira, mas não gostaria que o meu dinheiro servisse de novo para financiar clandestinamente um partido, para fazer um estádio inútil, para ir parar a uma conta clandestina na Suíça, para financiar José Eduardo dos Santos ou para pagar uma das três pensões de um dirigente reformado do Banco de Portugal.

A crise que vivemos é particularmente difícil de engolir porque não estamos a fazer sacrifícios em nome de nada. Não estamos a construir nada. Não estamos a investir em nada. Estamos apenas a pagar a agiotas e a repor desfalques.

O mínimo dos mínimos que podemos fazer é evitar que isto se repita. Podemos e devemos gritar na rua. Devemos exigir auditorias, a renegociação da dívida e fazer pressão sobre a União Europeia. Mas não nos podemos esquecer de adoptar uma causa qualquer, por pequena que seja, que garanta que esta indignidade não se repete. Uma das coisas que queremos certamente é transparência nas contas e na acção de quem fiscaliza as contas e responsabilização. Já que temos de pagar, paguemos para ver. (jvmalheiros@gmail.com)

1 comentário:

Fusível Ativo disse...

A meu ver, o problema para nos manifestarmos começa por encontrar a forma certa de o fazer. Isso é complicado, mais do que parece. Ir para rua de vez em quando ou fazer greves gerais, não é uma solução.

Infelizmente não sei qual é a certa, mas o importante é não deixar de pensar nela.

Enquanto não aparece, adiro às opções que me apresentarem com calma, prudência e medo do futuro.