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terça-feira, julho 24, 2012

E se em Setembro fosse diferente?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 24 de Julho de 2012
Crónica 29/2012


Vivemos sob a ditadura do sistema financeiro, sob a bota de um poder absoluto, anti-democrático e sem controlo. Que parte é que ainda não percebemos?
As pessoas andam caladas. Na rua, nos centros comerciais, nos transportes públicos, nos cafés e restaurantes. Até nas manifestações é difícil pôr uma multidão a escandir uma palavra de ordem e, quando o fazem, dura pouco. Custa-lhes falar. Ou será só impressão minha? Mesmo tendo em conta a redução do número de pessoas em certos locais da cidade devido às férias, tenho a sensação de que as pessoas cada vez falam menos, mais baixo, com menos energia. Acho que estão deprimidas, tristes com a vida, desiludidas umas com as outras e envergonhadas consigo. Haverá uma relação entre o barulho que se faz e a felicidade que se sente? Acho que sim. Basta ver um grupo de crianças a brincar num jardim e um grupo de bancários a pegar ao trabalho. Mas não é só a tristeza que é silenciosa. O medo também é. O medo faz-nos querer passar despercebidos. Os cafés do tempo do medo eram cafés de silêncios, de murmúrios, de olhares furtivos, de sombras curvadas em cinzento. E as pessoas estão outra vez com medo.

Vejo isto e penso nas manifestações espanholas. Espanha sempre foi um país ruidoso, onde se falou alto, demasiado alto, apaixonadamente. Várias vezes, em reuniões com amigos espanhóis, tive de explicar a alguém que assistia que não, não estávamos zangados, estávamos só a falar, a discutir literatura ou a trocar histórias.

Mas por cá, é diferente. As pessoas estão descontentes mas guardam o descontentamento para si, engolem a amargura e continuam a cavar a terra dura em silêncio, como velhos camponeses. Serão ainda os 48 anos? Irá durar muito mais? Será genético? Será geográfico? Se em Espanha as multidões fervem, aqui as pessoas parecem em banho-maria, sempre abaixo do ponto de ebulição.

O que é mais espantoso é que as pessoas andem deprimidas, tristes com a vida, desiludidas umas com as outras e envergonhadas consigo mesmo em vez de estarem furiosas com aqueles que as humilham e as roubam, em vez de se indignarem e revoltarem contra os que as mantêm mergulhadas na miséria, contra os que lhes mentem e continuam a mentir, contra os que os vivem no luxo comprado com o fruto das pilhagens aos mais pobres.

Como é que é possível que uma manifestação de desempregados em Lisboa tenha 500 pessoas? Como é possível que as pessoas não se indignem quando lhes roubam a saúde e a educação dos filhos? Como é possível que não reajam quando lhes dizem que o fruto do seu trabalho durante a próxima geração deve ir para os bancos e que tudo o que conquistaram lhes será confiscado?
Como é possível que não se revoltem ao ouvir o ministro “da Solidariedade” Pedro Mota Soares falar das fraudes do RSI mas abster-se de condenar a gigantesca fraude que é o sistema financeiro? Como é possível que não se revoltem perante a fraude que é a existência dos paraísos fiscais - como a Madeira e muito outros, na própria União Europeia - onde os ricos escondem o seu dinheiro para fugir ao fisco? Como é possível que não se revoltem perante o escândalo das PPP que sangram o Estado para encher o bolso de meia dúzia de empresas de primos do regime? Como é possível que não se revoltem perante o escândalo das privatizações cozinhadas entre os amigos e conhecidos do Governo? Perante uma justiça que parece existir apenas para reprimir os mais pobres e permitir os abusos dos mais ricos? Como é possível que não se revoltem perante as agências de rating e os bancos que traficam as taxas de juro em benefício dos grandes especuladores e em detrimento da economia real, dos trabalhadores e dos Estados? Como é possível que não se revoltem quando, fechando os olhos a estas fraudes, o Governo tem a lata de lhes dizer que viveram acima das suas possibilidades e que é necessário que paguem as dívidas que alguém contraiu em nome deles? Quando lhes dizem que essas dívidas, contraídas para pagar juros de dívidas que ninguém sabe como nasceram, devem ser pagas “custe o que custar”?
Vivemos uma gigantesca fraude, uma pseudo-democracia que é na realidade uma ditadura do sistema financeiro, onde um poder absoluto, anti-democrático e sem controlo domina a União Europeia, impõe e depõe Governos, fabrica as leis que quer e desrespeita as que não quer, compra políticos, controla a máquina do Estado em seu benefício, se apropria dos bens que pertencem a toda a sociedade através de privatizações e escraviza populações inteiras condenando-as a penas perpétuas de trabalhos forçados para pagar dívidas a juros agiotas.
A situação que vivemos não é apenas financeiramente insustentável, não é apenas economicamente insensata, não é apenas ambientalmente irresponsável. É também eticamente inadmissível, é também politicamente intolerável, é indecente e desumana. Por isso, o que acham de usar este Agosto para retemperar forças e de regressar em Setembro dispostos a perder a vergonha, a recuperar a voz e a reclamar os vossos direitos? São os meus votos para as vossas férias. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, outubro 18, 2011

Pagar para ver

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 18 de Outubro de 2011
Crónica 42/2011

Não estamos a fazer sacrifícios em nome de nada. Estamos apenas a pagar a agiotas e a repor desfalques.

“Não pagamos! Não pagamos!” Um grupo de jovens repete o slogan, sublinhando cada grito em instrumentos de percussão improvisados, mas sem conseguir arrebatar os manifestantes que estão a mais de dois ou três metros. Estão cheios de energia, como muitos outros grupos de jovens que integram a manifestação dos indignados de Lisboa, mas a inconsequência da palavra de ordem é… gritante.

Como se faz para não pagar o IRS que é “retido na fonte”? Ou o IVA dos combustíveis ou do almoço? O passe social? Ou os subsídios de férias e de Natal? Ou o BPN? Ou os estádios do Euro 2004? Ou o juro agiota dos empréstimos internacionais? Como se faz para “não pagar” o dinheiro que é rapado das pensões, cortado das bolsas, subtraído às prestações sociais? 

Não há desobediência civil que funcione. Não se trata de serviços que podemos ou não adquirir. Os impostos são extorquidos aos cidadãos, por definição. A sua legitimidade advém do facto de serem decretados por Governos e Parlamentos eleitos democraticamente, para serem usados em obras para benefício colectivo e de o seu uso ser escrutinado pelo povo e por instâncias de inspecção, fiscalização e regulação – cujos regulamentos também são feitos em nosso nome. Mas… e quando esses órgãos eleitos democraticamente não usam os impostos em obras de interesse público? E quando as instâncias de inspecção, de regulação e sanção não inspeccionam, nem regulam nem sancionam?

O que fazer quando nos dizem que devemos sem sabermos como nem porquê nem a quem nem quanto? Quando nos dizem que devemos porque, quando pagámos pontualmente as mensalidades da nossa hipoteca, estávamos a viver acima das nossas possibilidades? Quando nos dizem que o país estaria bem, mesmo com o buraco da Madeira e as empresas que fogem ao fisco e o BPN e o BPP, mesmo com os brindes à banca e as luvas às construtoras e as prendas aos partidos, mesmo com os estádios e o dinheiro que voou para a Suíça se ao menos a menina Leopoldina não tivesse comprado aquela semana de férias nas Caraíbas com o cartão de crédito? O que responder quando nos dizem que o nosso problema é que os trabalhadores portugueses ganham demasiado bem? O que responder quando nos dizem que o Estado paga demasiado aos pensionistas? O que fazer quando o Estado nos diz que o problema é o Estado Social? Quando o Estado nos diz que está certo cobrar impostos e entregá-los aos mais ricos mas está errado apoiar os necessitados? 

Neste caso, no nosso caso, o que gritar? “Não pagamos”? Não chega e é de mais. É de mais porque, de facto, pagamos. E não chega porque não é nada.

Eu vou ter de pagar, queira ou não queira, mas não gostaria que o meu dinheiro servisse de novo para financiar clandestinamente um partido, para fazer um estádio inútil, para ir parar a uma conta clandestina na Suíça, para financiar José Eduardo dos Santos ou para pagar uma das três pensões de um dirigente reformado do Banco de Portugal.

A crise que vivemos é particularmente difícil de engolir porque não estamos a fazer sacrifícios em nome de nada. Não estamos a construir nada. Não estamos a investir em nada. Estamos apenas a pagar a agiotas e a repor desfalques.

O mínimo dos mínimos que podemos fazer é evitar que isto se repita. Podemos e devemos gritar na rua. Devemos exigir auditorias, a renegociação da dívida e fazer pressão sobre a União Europeia. Mas não nos podemos esquecer de adoptar uma causa qualquer, por pequena que seja, que garanta que esta indignidade não se repete. Uma das coisas que queremos certamente é transparência nas contas e na acção de quem fiscaliza as contas e responsabilização. Já que temos de pagar, paguemos para ver. (jvmalheiros@gmail.com)