por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 26 de Dezembro de 2006
Crónica 45/2006
Neste Dezembro de 2006 termina a primeira Década das Nações Unidas para a Erradicação da Pobreza – com parcos resultados.
Na minha infância, nos anos 60, o Natal era a festa dos bolos e dos presentes no sapatinho, do presépio com musgo que se ia buscar a Sintra e da árvore de Natal com velas verdadeiras, a festa do nascimento do Menino Jesus, da Glória a Deus nas Alturas e Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade. E além de tudo isto era também a Festa dos Pobres. Não que os pobres fizessem uma grande festa, mas porque era a quadra em que os ricos e remediados (a curiosa expressão que o salazarismo inventou para descrever a classe média não endinheirada da época) dedicavam um pouco do seu tempo e atenção aos pobres.
Havia muitos pobres. Havia trabalhadores pobres que começavam a bater à porta à hora do jantar a meados de Dezembro "desejando a Vossa Excelência e Excelentíssima Família Boas Festas e um Próspero Ano Novo", às vezes só com o boné na mão, outras trazendo um cartão de visita impresso para a ocasião. Eram os carteiros, os homens da companhia de electricidade, da companhia das águas, os "homens do lixo", os cantoneiros, os jardineiros, os bombeiros, os guardas-nocturnos, os limpa-chaminés, os homens que lavavam as ruas e que em troca de uma moeda também davam umas mangueiradas nos carros e muitos outros. Todos dedicavam os serões de Dezembro à obtenção do subsídio de Natal que o contrato não incluía. Mas também havia os outros: os pobres de pedir.
Esses também tinham direito a tratamento especial no Natal. Havia quem fizesse sopa a mais para os pobres que vinham bater à porta – para ser comida sobre os joelhos, sentado na escada, depois de tocar à porta de serviço, que dava para a cozinha. Havia os pobres que nesses dias traziam a família para apresentar à senhora que tem sido tão boa para nós, e havia mesmo quem deixasse a mesa da cozinha preparada com uma merenda para os "seus pobres".
Nesses dias em que a maior parte das mulheres ainda estava em casa e em que ainda se abria a porta da rua quando a campainha soava, muitas famílias ricas ou remediadas (às vezes apenas escassamente mais desafogadas que os recipientes da caridade) tinham os seus pobres, muitas vezes com dias certos, que vinham receber a esmola uma vez por semana, regulares como assalariados.
Os pobres marcavam também presença noutro mundo: nas histórias. Do "Conto de Natal" de Dickens, à "Menina dos fósforos" de Hans Christian Andersen, transmitindo a moral da dádiva ou (nos melhores casos) o sentimento de injustiça social às crianças de garganta apertada e lágrimas nos olhos. Não é uma caricatura: ouvi várias vezes em resposta à pergunta "Como é que Deus permite que haja pobreza?" que a existência dos pobres se justificava por estes permitirem o exercício da caridade cristã dos outros.
Vem tudo isto não só a propósito do Natal mas do fim, neste Dezembro de 2006, da primeira Década das Nações Unidas para a Erradicação da Pobreza – com parcos resultados.
José Sócrates acabou de nos vir dizer que a economia, as contas públicas e o emprego estão a dar passos positivos em Portugal, mas (como as Nações Unidas não se cansam de explicar a quem quer ouvir), em África ou em Portugal, não chega esperar que a economia arranque da pobreza os que lá vivem – tanto mais que a riqueza produzida tem uma estranha tendência para se espalhar pela sociedade de forma cada vez mais desigual. São necessárias políticas activas de combate à pobreza e à exclusão; de integração de emigrantes clandestinos; de educação de crianças, jovens e adultos; de formação profissional; de educação sanitária; de cuidados médicos; de protecção das mulheres; de microfinanciamento; de acções de realojamento e acompanhamento de famílias; de ajuda alimentar; de combate às redes de criminalidade que mantêm as escravaturas que geram grande parte da pobreza. Tudo acções que têm de ter como objectivo definido erradicar a pobreza. Sem essa atenção aos mais pobres dos pobres, qualquer discurso de solidariedade natalícia é vazio e sem sentido. (jvmalheiros@gmail.com)
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