Se há uma região que tem os recursos e a vontade para levar esta ambiciosa aventura a bom termo, essa região é a Europa.
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 2 de Janeiro de 2007
Crónica 1/2007
Durante o tradicional Concerto de Ano Novo que foi ontem transmitido de Viena para todo o mundo, o exuberante maestro Zubin Mehta aproveitou a sua saudação de Ano Novo, feita em seu nome pessoal e da Filarmónica de Viena, para celebrar a adesão dos dois novos membros da União Europeia, a Roménia e a Bulgária.
A saudação poderia ter sido recebida com mais calor pelo público do Musikverein, mas não poderia ter sido feita por melhor porta-voz do que Mehta, um indiano natural de Bombaim, com uma fulgurante carreira como maestro que o colocou à frente das filarmónicas de Montreal, Los Angeles e de Nova Iorque e que é hoje director musical vitalício da Orquestra Filarmónica de Israel. Mehta – a par de outra figura maior da música e da paz, o maestro argentino Daniel Barenboim, de quem é aliás um amigo próximo - tem desenvolvido um trabalho constante pelo diálogo entre as culturas e, em particular, pela aproximação entre árabes e israelitas, e é gratificante que os dois novos membros da família europeia tenham sido saudados em nome da Europa por este indiano de religião parsi, educação anglo-austríaca, carreira americana e cultura judia. De facto, se algo representa o sonho da Europa, não é certamente a burocracia da Comissão Europeia, mas a cultura europeia de diálogo que encontra corpo – entre muitos outros exemplos exaltantes – na música sem fronteiras criada por uma orquestra multicultural, como as que Mehta ou Barenboim têm animado.
A entrada de mais dois países na União Europeia traz muitos problemas novos (devido, em particular, ao baixo nível de desenvolvimento dos novos membros) e vem agudizar outros (como os processos de tomada de decisão) mas não pode deixar de ser vista como mais uma vibrante vitória da ideia de Europa. Não pelo facto da União se aproximar dos 500 milhões de habitantes ou por qualquer outro recorde do género (ainda que a dimensão do mercado interno seja importante) mas porque esta Europa foi criada em torno dos ideais da paz, da liberdade, da igualdade, da democracia, da cooperação, da solidariedade, do direito e do progresso – e não em nome de qualquer sonho expansionista ou de supremacia, como não o foi em nome do medo nem do isolacionismo.
A Europa a 27 (e a 28, a 29...) é sem dúvida um problema, mas é o problema que a Humanidade tem de resolver se queremos que a paz e a cooperação sejam uma realidade na vida dos nossos filhos. Se há uma região do mundo que tem os recursos e a vontade (e a História) suficientes para levar esta ambiciosa aventura a bom termo, essa região é a Europa.
A Europa pode ter sido um objectivo económico, mas foi-o porque o comércio sempre foi o melhor meio para evitar as guerras. A ideia na base da Europa é uma ideia política e uma ideia política simultaneamente vantajosa e generosa – ou um sonho, se se quiser – e é essa ideia que temos de pôr em prática. As adesões de novos países e os novos pedidos de adesão apenas provam o poder mobilizador desse sonho.
As dificuldades fazem parte daquela "intendência" de que se diz que De Gaulle falava. A intendência vem atrás da decisão.
terça-feira, janeiro 02, 2007
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4 comentários:
Respondo ao convite de discutir a sua coluna. E retomo a sua afirmação de que a “Europa a 27 (…) é, sem dúvida, um problema, mas é o problema que a humanidade tem de resolver, se queremos que a paz e a cooperação sejam uma realidade na vida dos nossos filhos”. Absolutamente de acordo consigo. Discutámo-lo, pois.
Das suas várias vertentes problemáticas erijo uma apenas. Aquela que me parece central em ordem a garantir que a ideia «generosa» de Europa se aprofunde e não sucumba. Erijo o tema da intercomunicação como cimento de cidadania europeia.
Para além dos objectivos económicos, em parte cimentados pelo euro, há outras dimensões políticas que implicam uma efectiva cidadania europeia, isto é, não apenas a consciência, mas a vivência dessa cidadania. Arrisco que só uma língua comum permitirá atingir esse objectivo.
À imagem do euro, essa língua não pode ser a de um estado membro, logo outra será. Não tendo sentido procurá-la noutro espaço, resta pois que esse papel seja desempenhado por uma língua neutral, não étnica. Só as línguas planeadas cumprem pois essa condição. Porém, contrariamente ao euro, essa língua não deverá substituir as línguas da Europa, mas ser um instrumento de comunicação comum que permita que todas as línguas europeias possam ser divulgadas em todo o espaço europeu. Só assim se cumprirá esse objectivo de UE que implica igual dignidade das culturas europeias. No actual contexto, de línguas economicamente dominantes, isso não acontece, e o Inglês cada vez mais cria um deserto à sua volta.
O que eu estranho é que esta preocupação passe tão à margem dos políticos e dos jornalistas, mesmo daqueles que defendem a Europa comum e vêem nela uma ideia «vantajosa e generosa». Mas não será evidente que a ignorância desta questão cada vez mais abre caminho ao Inglês? E não será que o Inglês é uma ideia contra a UE, desde logo porque impõe a supremacia de uma língua/cultura sobre todas as outras?
Caro José Malheiros, é para mim um mistério que este tema seja tão de somenos para políticos e jornalistas que defendem a necessidade de uma União Europeia para além da vertente económica. A ligeireza com que se aceitou a introdução do Inglês no primeiro ciclo do nosso sistema educativo é para mim um claro sinal de alarme. O primeiro ciclo deveria dar lugar a uma língua neutral, não a uma língua nacional. Ganhou a vertente economicista do problema que não fez mais do que constatar a importância do Inglês no mundo actual, desprezando o risco inerente que é o da destruição da própria UE (ou, no mínimo, da não progressão duma dimensão económica para uma política, capaz de intervir positivamente nos problemas mundiais). Rendemo-nos à lei do mais forte, quando a lógica da UE não é a do império, e portanto não temos que ceder em nada da nossa cultura, pois que isso é empobrecer a Europa e, no limite, dar cabo dela.
Bem, fico-me por aqui, e à sua disposição para discutir esta e outras vertentes do problema, como, por exemplo, a da impossibilidade do europeu trilingue, com que a Comissão Europeia mascara o avanço do Inglês.
Sobre a língua comum, lamento mas não posso concordar consigo. Não acredito numa “língua planeada”. Acho que o facto de o inglês ganhar foros de “lingua franca”, como outrora o latim, é uma vantagem para o entendimento dos povos.
A minha atitude não é de considerar o inglês como a “língua dos ingleses e dos americanos” mas sim como a “lingua franca” do século XXI.
Só um reparo. Posso bem compreender que você tome a língua inglesa como uma língua franca, o que não pode escamotear é que nenhuma língua nacional (e a Grã-Bretanha está na UE) pode ser a língua comum da UE. E isso tem implicações e muitas. Até... a de impedir o avanço da UE.
Respondo ao convite de discutir a sua coluna. E retomo a sua afirmação de que a “Europa a 27 (…) é, sem dúvida, um problema, mas é o problema que a humanidade tem de resolver, se queremos que a paz e a cooperação sejam uma realidade na vida dos nossos filhos”. Absolutamente de acordo consigo. Discutámo-lo, pois.
Das suas várias vertentes problemáticas erijo uma apenas. Aquela que me parece central em ordem a garantir que a ideia «generosa» de Europa se aprofunde e não sucumba. Erijo o tema da intercomunicação como cimento de cidadania europeia.
Para além dos objectivos económicos, em parte cimentados pelo euro, há outras dimensões políticas que implicam uma efectiva cidadania europeia, isto é, não apenas a consciência, mas a vivência dessa cidadania. Arrisco que só uma língua comum permitirá atingir esse objectivo.
À imagem do euro, essa língua não pode ser a de um estado membro, logo outra será. Não tendo sentido procurá-la noutro espaço, resta pois que esse papel seja desempenhado por uma língua neutral, não étnica. Só as línguas planeadas cumprem pois essa condição. Porém, contrariamente ao euro, essa língua não deverá substituir as línguas da Europa, mas ser um instrumento de comunicação comum que permita que todas as línguas europeias possam ser divulgadas em todo o espaço europeu. Só assim se cumprirá esse objectivo de UE que implica igual dignidade das culturas europeias. No actual contexto, de línguas economicamente dominantes, isso não acontece, e o Inglês cada vez mais cria um deserto à sua volta.
O que eu estranho é que esta preocupação passe tão à margem dos políticos e dos jornalistas, mesmo daqueles que defendem a Europa comum e vêem nela uma ideia «vantajosa e generosa». Mas não será evidente que a ignorância desta questão cada vez mais abre caminho ao Inglês? E não será que o Inglês é uma ideia contra a UE, desde logo porque impõe a supremacia de uma língua/cultura sobre todas as outras?
Caro José Malheiros, é para mim um mistério que este tema seja tão de somenos para políticos e jornalistas que defendem a necessidade de uma União Europeia para além da vertente económica. A ligeireza com que se aceitou a introdução do Inglês no primeiro ciclo do nosso sistema educativo é para mim um claro sinal de alarme. O primeiro ciclo deveria dar lugar a uma língua neutral, não a uma língua nacional. Ganhou a vertente economicista do problema que não fez mais do que constatar a importância do Inglês no mundo actual, desprezando o risco inerente que é o da destruição da própria UE (ou, no mínimo, da não progressão duma dimensão económica para uma política, capaz de intervir positivamente nos problemas mundiais). Rendemo-nos à lei do mais forte, quando a lógica da UE não é a do império, e portanto não temos que ceder em nada da nossa cultura, pois que isso é empobrecer a Europa e, no limite, dar cabo dela.
Bem, fico-me por aqui, e à sua disposição para discutir esta e outras vertentes do problema, como, por exemplo, a da impossibilidade do europeu trilingue, com que a Comissão Europeia mascara o avanço do Inglês.
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