por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 16 de Janeiro de 2007
Crónica 3/2007
Uma grande maioria dos portugueses defende medidas enérgicas que permitam evitar o aborto
Nos últimos anos, verificou-se uma pequena mas significativa evolução na abordagem do aborto: enquanto as pessoas que são contra continuam a ser contra, hoje já não há ninguém que se declare "a favor" do aborto. Tendo sempre sido um defensor da despenalização, devo dizer que sempre me senti chocado quando alguém simplificava a sua posição ao ponto de se declarar "a favor" da interrupção voluntária da gravidez. O que existem são pessoas que consideram o aborto moralmente inadmissível em todas as circunstâncias e outras que admitem que se recorra ao aborto em circunstâncias especiais – ainda que reconhecendo a prática como indesejável. E, entre estas últimas, existem como se sabe discussão sobre quais devem ser essas circunstâncias especiais que tornariam o aborto admissível.
Penso que existe por isso uma grande maioria na sociedade portuguesa (para não dizer que existe uma opinião unânime) que defende medidas enérgicas que permitam evitar o aborto.
É verdade que há divergência entre o que poderão ser essas medidas. Num extremo, encontramos os que consideram que o aborto pode ser evitado através da abstinência sexual ou convencendo as mulheres que engravidam sem o desejar a aceitar como uma cruz o que deveria ser uma bênção e a levá-la até ao calvário. Mas, para além desta posição extremista, penso que existe mais uma vez uma maioria significativa (que reúne pessoas que vão votar sim e não no referendo) que aprova medidas que poderiam ser de grande alcance em termos de redução do aborto e que ainda escasseiam.
A primeira dessas medidas é uma política de apoio à família, que se traduza não só mas também em incentivos fiscais sensíveis pelo nascimento de um filho. Uma tal política faz sentido em termos de justiça social, faz sentido em termos demográficos e económicos e faz sentido em termos de prevenção do aborto. Não é preciso inventar a roda neste domínio: basta copiar as boas medidas existentes noutros países.
Outra medida é uma oferta alargada e profunda de educação sexual, e nomeadamente de aconselhamento de controlo da natalidade, que atinja todos os adolescentes sem excepção, a partir do momento em que iniciam uma vida sexual activa – rapazes e raparigas, maiores e menores, em ambiente escolar ou fora dele.
Outra medida indispensável é uma oferta eficaz e barata (vide gratuita) de contraceptivos e de métodos de diagnóstico e interrupção precoce da gravidez (pílula do dia seguinte) – que poucas sensibilidades podem considerar equivalente ao IVG às dez semanas. Não se pode ser contra o aborto e contra a contracepção acessível.
Outra medida, finalmente, seria uma política de acompanhamento e apoio de mulheres grávidas que não querem ficar com os seus filhos mas que estão dispostos a levar a gravidez a termo desde que sejam apoiadas durante a gestação e que tenham a garantia de que os bebés poderão ser entregues para adopção imediata.
Quando se fala de propostas como estas, há sempre quem venha dizer que muito disto já existe. E, em certos casos, isso é verdade. Trata-se é de uma questão de grau. Uma jovem de um meio social favorecido possui a informação, o acesso aos serviços médicos e sociais e, nos melhores casos, pode explicar o que pretende, lutar pelos seus direitos e encontrar aconselhamento. O pior são as outras.
Não basta que certos serviços existam. É preciso promover o seu uso e generalizar a sua cobertura. É preciso promover a sua qualidade (respeito pela mulher, reconhecimento do direito a escolher, protecção do anonimato, dignidade do acolhimento). É preciso não pressionar as mulheres grávidas a guardar o seu filho quando sabem que elas não o desejam ou não o podem fazer. É preciso fazer chegar a contracepção as mulheres em vez de esperar que as mulheres se dirijam às consultas. É preciso garantir que todas as jovens passam por consultas de planeamento familiar onde lhes seja oferecida (literalmente) uma verdadeira escolha.
Sem tudo isto, com referendo ou sem referendo, com sim ou com não, com ou sem objecção de consciência dos médicos, o aborto vai continuar a ser a maldição que é.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
4 comentários:
Na Bélgica, país onde vivo há vinte anos, há muito tempo que os jovens têm acesso a tudo o que defende no seu artigo.
Não tendo dúvidas na minha posição quanto à votação no referendo,
acompanho com alguma atenção os comentários sobre o assunto que têm surgido. Alguns, claramente, apontam para que continue a hipocrisia.
Outros têm sido importantes para o debate. Mas talvez nenhum tenha sido tão claro a apontar soluções como o seu.
Pessoalmente, sou um defensor acérrimo do combate à pena de morte (incluindo a que é "legitimada" pela guerra), bem como a todos os tipos de agressão. Isto porque, antes de mais, sou defensor da dignidade humana. E dignidade humana não é ter filhos, nem fazer abortos, em vãos de escada. Por isso, voto sim e, se for possível, com a reprodução do seu comentário como declaração de voto. Obrigado por fazer parte daqueles que ainda pensam.
Nem só de elogios se faz a admiração.
No seu texto de ontem, deixou-me perplexa a expressão "(vide gratuita)", inserida na frase que se inicia por: "Outra medida indispensável…". Por mais que pense, não consigo perceber ao que vem ou o sentido que pode ter. Pior: a única analogia que estabeleço é com o francês "voire gratuit", o que ainda me parece mais grave.
Às tantas, não é senão gralha e esta é uma espécie de que ninguém está livre e que pode ser assassina.
Tem razão com a analogia: o “vide” latino tem aqui o mesmo significado que o “voire” francês, ainda que a impessoalidade do infinitivo francês não recorra ao imperativo do latim.
Mas não concordo com a sua crítica. “Vide” significa “veja” (ou “veja-se”) que aqui é sinónimo de “leia” ou “leia-se”.
Acho que o uso de vide é pouco corrente mas perfeitamente admissível.
Enviar um comentário