por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 25 de Fevereiro de 2007
Em Cena 1/2007
Do No Harm. O título, a vermelho, sobressai na capa da última edição da revista Foreign Affairs, uma das "bíblias" das Relações Internacionais. A tese do artigo é inesperada como um soco: o texto defende que as grandes iniciativas filantrópicas de combate a doenças em países do Terceiro Mundo - como as que têm sido levadas a cabo pela fundação de Bill Gates no caso da sida ou da malária - pioram a situação sanitária nos países onde actuam em vez de a melhorar. Porquê? Porque se focam nas doenças mais mediáticas em vez de reforçar infra-estruturas de saúde que teriam um impacto positivo global. Porque definem objectivos de curto prazo em vez de fazer apostas que teriam benefícios mais profundos mas mais tardios. Porque absorvem os escassos recursos dos países onde actuam, desertificando à sua volta o sector dos cuidados primários.
A autora do artigo é americana, chama-se Laurie Garrett, foi durante muitos anos jornalista do diário nova-iorquino Newsday, já ganhou um Pulitzer (e foi nomeada três vezes) além de um saco cheio de muitos outros prémios de saúde, ciência e jornalismo e anda a defender teses incómodas sobre a saúde pública há mais de vinte anos.
Licenciada em Biologia pela Universidade da Califórnia e com um doutoramento interrompido para se dedicar ao jornalismo (o bichinho de uma rádio local afastou-a da investigação) Garrett tornou-se rapidamente famosa pelas suas reportagens, mas foi o seu livro The Coming Plague, sobre as epidemias emergentes, que focou sobre ela a atenção mundial. Garrett mostra como a sociedade global é vulnerável às epidemias e como a aparente imunidade às infecções que imaginamos possuir não constitui qualquer real protecção. Sida, Ebola, tuberculose, gripe, bioterrorismo - a actualidade foi mostrando a realidade das ameaças anunciadas por Garrett. The Coming Plague não é apocalíptico mas enuncia apocalipses possíveis: é um livro sobre a vulnerabilidade que o egoísmo, a cupidez, a arrogância, a inércia ou os preconceitos ideológicos nos fazem correr em termos de saúde. Garrett diz que os micróbios estão a ganhar, que eles não conhecem fronteiras e lembra que é necessário um sentido de comunidade e esforços coordenados a nível global para equilibrar a balança a favor dos humanos.
No seu segundo livro, Betrayal of Trust, Garrett foca a desagregação das estruturas de saúde pública e lembra como os cuidados primários de saúde são essenciais, não podendo ser substituídos por uma tecnologia médica de ponta que, em caso de epidemia, não só não se poderá estender aos pobres como não conseguirá proteger os ricos. O trabalho anuncia o artigo agora saído na Foreign Affairs, que irá crescer até se transformar num livro sobre saúde e segurança.
Garrett é membro do Council on Foreign Relations desde 2004 (ocupando ironicamente um lugar financiado pela Fundação Bill e Melinda Gates), onde faz investigação na área da Saúde Global, e a sua voz possui hoje um impacto mundial, embora não molde ainda as políticas de saúde. Entre os projectos que tem entre mãos conta-se um novo livro sobre doenças emergentes e segurança global e uma investigação com foco na sida e no bioterrorismo.
Garrett repete que neste momento o problema não é falta de dinheiro nem de ciência, mas de políticas de desenvolvimento sustentável. E lembra que as doenças globais são uma face inevitável da globalização.
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