domingo, março 11, 2007

Os andróides sonham com pecados electrónicos?


por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 11 de Março de 2007
Em Cena 2/2007

A demografia não engana. As taxas de crescimento variam imenso de ano para ano, de país para país, de sector para sector, mas o número de robôs no mundo cresce a uma taxa anual de dois dígitos, que poderá rondar os 20 por cento. O que significa que, de quatro em quatro anos, o seu número duplica.
Por enquanto, a esmagadora maioria são operários, robôs industriais, a maior parte na indústria automóvel, mas o panorama está a mudar. Os robôs mais jovens estão a diversificar-se, a dedicar-se a novas áreas, no sector fabril (manufactura, construção) mas também nos serviços (limpeza, medicina), e o maior crescimento está a ocorrer nos robôs de companhia e para entretenimento. Além de estarem a invadir a segurança e a defesa.

Sendo os números o que são, é inevitável que um dia os robôs sejam mais do que os humanos.
Dando mostras de previdência, o Governo sul-coreano decidiu na semana passada encarregar um grupo de cinco peritos de escrever o primeiro Código de Ética Robótica - que deverá definir direitos e deveres dos humanos e dos robôs e regras de relacionamento entre ambos.
A notícia foi recebida com sorrisos, mas a verdade é que temos vindo a alargar o âmbito da ética para cobrir as nossas relações e obrigações com os animais, com a Natureza, com os gâmetas, com o nosso património genético, com a História - e os robôs parecem um passo natural.
Este código será o primeiro documento de não-ficção onde será atribuído aos robôs algo semelhante a uma personalidade psicológica e jurídica. Trata-se de um novo tipo de "pessoas", que não sabemos que atitudes terão nem de que grau de autonomia e capacidades virão a gozar, mas cuja presença vai sem dúvida moldar o nosso comportamento, talvez de forma mais profunda do que a TV ou o computador.
Não se pode falar do tema sem evocar as famosas três Leis da Robótica do escritor Isaac Asimov, que definiam que um robô não pode ferir um humano, deve obedecer a ordens de humanos e deve tentar proteger-se dos perigos. Estes princípios deverão constar do código (neste caso, vertidos no software) mas a Coreia do Sul pretende ir além deles. Nem se trata apenas de codificar a defesa dos robôs do ponto de vista patrimonial (como objectos), mas também de discutir a defesa dos seus eventuais direitos, algo que deixará de ser disparatado se os robôs um dia tiverem sentimentos - um tema caro à ficção científica.
Nem todas as regras versadas no novo código visam proteger o robô. Pretende-se também prevenir um excessivo investimento emocional dos humanos nos robôs (que podem ser usados como parceiros de jogos ou brinquedos sexuais, para não dizer companheiros ou escravos sexuais), o que poderia ter um impacto sensível nas relações humanas. Para além disto, deverá também ser prevenido o uso de robôs para actividades ilícitas e a protecção de dados colhidos pelo robô (chamar-se-á sigilo dono-robô?).
Para além das questões triviais, que já se colocam em relação aos computadores como repositórios de informação pessoal, há algo de novo que vai acontecer: os robôs (ou andróides) são cada vez mais inteligentes, imitam cada vez mais os humanos, e será provavelmente impossível a partir de certa altura não os investir de alguma identidade e não projectar neles afeição (já o fazemos com bonecas ou animais de peluche). E a nossa relação com eles terá certamente um impacto crescente nas nossas restantes relações e atitudes - tal como aconteceu com a TV ou as consolas de jogos sem que para isso fosse necessário reconhecer-lhes inteligência ou consciência.
O crescimento da população de robôs poderá dar-nos ainda uma perspectiva diferente de qualidades que nos habituámos a considerar humanas (persistência, paciência, disciplina, obediência, cortesia) mas que os robôs poderão exibir em extremo. Que impacto terá isso na forma como as valoramos nos humanos?
Uma das razões por que é conveniente definir regras de relacionamento por parte dos humanos é porque os robôs são não só cada vez mais inteligentes como aprendem cada vez mais com a experiência - como nós - o que significa que eles podem tornar-se espelhos das nossas reacções. E gestos desadequados por parte dos humanos podem dar origem a perturbações da aprendizagem, gerando robôs inadaptados.
Um pouco de ética pode impedi-los de se tornarem sociopatas e, em vez disso, fazer deles grandes poetas.

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