domingo, março 25, 2007

História de uma princesa que faz hoje cinquenta anos


por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 25 de Março de 2007
Em Cena 3/2007

O seu nome parece ter querido dizer "sol poente" ou "continente" e surgiu algures na Grécia. Quanto a ela própria, ninguém sabe se foi a primeira a usar o nome ou se foi apenas a mais conhecida de uma longa linhagem. Há quem diga que uma filha do Oceano já se tinha chamado assim e essa pode ter sido a razão do baptismo.
Também ninguém sabe ao certo quando é que nasceu, mas conhece-se o local com alguma precisão. Terá sido na Fenícia, a região a que hoje chamamos Líbano e que ocupava também uma parte da actual Síria e Israel, uma terra de mercadores e marinheiros.
Sabe-se que era de uma beleza estonteante, de deixar a cabeça à roda aos homens e aos deuses, e que era filha do rei Agenor de Tiro.
Um dia, sem querer, conquistou o coração de um apaixonado que se prendeu dela mal a viu e que não olhou a meios para, por sua vez, a conquistar.
Ovídio, que viveu no início da nossa era, conta nas "Metamorfoses" que esse apaixonado se disfarçou de touro para poder aproximar-se dela sem suspeitas, um belo touro brancos com cornos de pérola que encantou as vacas com quem se cruzou num prado e que a seduziu a ela também. A princesa enfeitiçada enfeitou os cornos do touro com grinaldas até que ele, de surpresa, a arrebatou no seu dorso e se lançou mar adentro.
Europa (era esse o seu nome) olhou para trás com nostalgia, sabendo que deixava para sempre a Fenícia, mas agarrou-se com força ao touro para não cair.
O apaixonado era Zeus, que a levou para Creta. Não se sabe o grau de convencimento que terá sido necessário para satisfazer a paixão do deus e o rapto poderia sugerir imposição, mas a acreditar em Ovídio, que devia saber pois não escreveu só as "Metamorfoses", a sedução deve ter falado mais alto que a violência – como sugere a questão das grinaldas.
Europa conseguiu dar três filhos a Zeus sem nunca ter sido objecto da vingança de Hera, a ciumenta mulher do amante – o que mostra, mais do que o favorecimento dos deuses, que a sorte protege a beleza.
A única prova de que Europa não foi completamente imune às agruras do infortúnio são certos relatos mal-intencionados que chegaram aos nossos dias e a descrevem como uma vaca.
O tema de Europa arrebatada por Zeus transfigurado em touro é um clássico da arte clássica dos gregos aos romanos e de Tiziano a Rembrandt e, na maior parte dos exemplos, Europa acaricia mesmerizada o corno branco do touro branco. Pode ter sido amor.
Europa viria a casar-se mais tarde com o rei de Creta – depois de o seu romance com Zeus ter esfriado – e este adoptou os seus três filhos: Minos (que seria rei de Creta); Radamanto (rei das ilhas Cíclades) e Sarpedon (príncipe da Lícia). Foi a mulher de Minos quem deu à luz o Minotauro – fruto de uma tórrida relação extra-matrimonial com outro touro branco que não era Zeus – mas isso é outra história.
Também se sabe que o alfabeto foi levado para a Grécia (ou inventado) por um irmão de Europa, Cadmo, que fundou Tebas (a das sete portas) depois de a Pitonisa de Delfos lhe ter dito que não valia a pena continuar em busca da sua irmã, como o pai lhe tinha pedido – mas isso também é outra história.
Europa foi idolatrada em Creta, onde criaram um festival em sua honra. O território que Zeus atravessou com Europa às costas passou a ter o seu nome, pela mesma razão que Dumont d'Urville chamou Terra Adélia à costa da Antártida. Os gregos diziam "Europa" para indicar o continente que ficava para norte e para oeste e que não era a Ásia nem a Líbia (norte de África), que conheciam bem e de onde vinham as suas raízes. Europa era, se não o fim do mundo ou a Terra Incognita, pelo menos o estrangeiro.
Há uma Europa ainda mais distante. Quando Simon Marius descobriu as luas de Júpiter em 1610 (sim, Galileu descobriu-as ao mesmo tempo, mas foi Marius que as baptizou) chamou a todas nomes de namoradas de Júpiter/Zeus e a uma delas Europa.
A actividade de Europa não tem diminuído nos últimos tempos e o romance de juventude com Zeus não lhe prejudicou a reputação, antes lhe é creditado como uma paixão pessoalmente enriquecedora e uma experiência de proximidade do poder que teria sido difícil adquirir de outra forma.
Hoje celebra-se o seu aniversário. Todos sabem que já conta o tempo em milénios, mas há uns anos decidiu pôr o contador a zeros. Discretamente, ninguém mostrou reparar. Diz ter cinquenta anos e há festas em todas as cidades em sua honra. O fulgor passado já passou e os despeitados denunciam com crueldade cada suspeita de uma ruga, mas é evidente que entre os presentes que Europa conseguiu obter de Zeus nas cálidas noites cretenses está o da eterna juventude. A verdade é que ainda tem um grande encanto e é fácil perceber como o coração de Zeus se pode ter precipitado quando a viu a passear por entre as flores.

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