domingo, abril 08, 2007
Hirsi Ali, a voz das mulheres caladas do Islão
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 8 de Abril de 2007
Em Cena 4/2007
Quando foi exibida na Holanda a curta-metragem Submission, do realizador Theo van Gogh e da então deputada do Parlamento holandês de ascendência somali Ayaan Hirsi Ali, ambos os autores se tornaram objecto do ódio dos fundamentalistas islâmicos e de múltiplas ameaças de morte.
Theo van Gogh pagou a ousadia com a vida: numa manhã de Novembro de 2004, um fundamentalista islâmico enfiou-lhe oito balas no corpo, abriu-lhe a garganta de lado a lado, cravou-lhe 28 punhaladas e deixou duas facas espetadas no seu peito. Presa por uma das facas estava uma mensagem de cinco folhas contendo diversas ameaças a outras pessoas, entre as quais Ayaan Hirsi Ali.
Para os holandeses, este assassinato (a quem alguns chamam o "11 de Setembro holandês") marcou um ponto de viragem na sua percepção do fenómeno do islamismo.
Hirsi Ali passou a estar sob constante protecção policial, sempre em locais desconhecidos, e teve de suportar os constantes discursos de ódio oriundos dos islamistas do seu país de adopção de então (hoje vive nos Estados Unidos). O imã Fawaz de Haia teve o requinte de amaldiçoar Hirsi Ali num sermão, onde pediu a Deus que a cegasse e a fulminasse com um cancro do cérebro e um cancro da língua.
Submission é um pequeno documentário sobre a escravidão a que são sujeitas muitas mulheres muçulmanas em nome da religião e Hirsi Ali fez da sua vida uma batalha pela liberdade das mulheres muçulmanas, pela liberdade de expressão, contra os casamentos forçados e contra a mutilação genital feminina - a que a própria Hirsi Ali foi submetida quando tinha cinco anos.
Há cerca de uma semana a Eritreia anunciou a entrada em vigor no país da proibição da mutilação genital feminina (também conhecida pela expressão, menos violenta, "circuncisão feminina"). O alcance da medida percebe-se melhor se se souber que neste paupérrimo país do Corno de África, de independência recente e que vive numa paz frágil, mais de 90 por cento das crianças do sexo feminino são submetidas à intervenção, com consequências trágicas em termos da sua saúde, mortalidade e felicidade.
É verdade que as periclitantes condições sociais, políticas e económicas da Eritreia não garantem nada sobre a sustentabilidade da medida - mas, a acreditar nas notícias que chegam do país, ela parece ter sido relativamente sustentada, tendo surgido depois de campanhas feitas nas aldeias onde se tentou elucidar as populações sobre as consequências da mutilação genital e que parecem ter sido bem recebidas.
É verdade que a Eritreia não é o único país onde a mutilação genital tem lugar, nem é o primeiro país a proibi-la, nem a proibição significa que a prática deixe de ter lugar. Mas a verdade é que a proibição (com a condenação que ela pressupõe, a dissuasão que gera, a educação que a deve acompanhar) é um passo essencial para pôr fim a esta tradição primitiva e desumana - que muitos religiosos muçulmanos criticam, mas que as leituras tradicionais da religião alimentam.
Sem querer retirar o mérito aos actores locais, como a União Nacional das Mulheres da Eritreia, que se mobilizou pela lei, a verdade é que sem a participação de Hirsi Ali a consciencialização mundial em torno do problema teria sido muito menor e estas vitórias locais muito mais árduas. Nos seus livros - e, em particular na sua recente autobiografia ("Mijn Vrijheid" - Minha Liberdade), publicada em Fevereiro nos Estados Unidos sob o título "Infidel", Hirsi Ali tem sido uma advogada ardente das suas causas e os seus relatos tocam de uma forma especial os que o ouvem. Depois de ler Hirsi Ali deixa de ser possível aceitar o argumento de que estas práticas são especificidades culturais relativamente às quais se deve adoptar alguma tolerância. Hirsi Ali explica bem aonde leva esta falsa tolerância que é afinal cobardia: à escravidão das mulheres, à paulatina destruição das liberdades cívicas e ao crescimento do fundamentalismo totalitário no seio das próprias sociedades liberais.
Hirsi Ali, hoje com 37 anos, já não vive na Holanda. A sua situação em termos de segurança e um problema com a sua aquisição de nacionalidade (Hirsi Ali deu informações falsas ao chegar à Holanda para obter o asilo político) fizeram-na preferir os Estados Unidos. Hoje é fellow do American Entreprise Institute, um think tank onde pontificam as vozes dos neoconservadores (ainda que não só).
Hirsi Ali já não é crente. Depois de algumas tentativas para compatibilizar o Islão com os direitos das mulheres, acabou por se afastar da religião. Hoje considera que o Islão, tal como é praticado e tal como é definido pelas escrituras, é hostil às mulheres e que é necessário um profundo esforço dos crentes para a sua reforma. A sua luta é, agora como antes, pela educação das mulheres muçulmanas - é por aí que começará a sua libertação e, através dela, a dos seus filhos.
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