domingo, abril 22, 2007
Vanessa Redgrave, a mulher que tenta levantar a sua voz
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 22 de Abril de 2007
Em Cena 5/2007
Em Portugal, é apenas uma actriz. Apenas uma actriz é uma maneira de dizer: uma excelente e apreciada actriz. Uma actriz de cinema, com papéis memoráveis. Julia, ao lado de Jane Fonda; Howard"s End, ao lado de Anthony Hopkins. Para não falar do Blow up de Antonioni (1966) ao pé (pertinho) de David Hemmings e de muitos outros papéis onde é uma comum actriz secundária mas que nos parecem de "estrela convidada", tal é o aroma de sofisticação suplementar, o toque de classe que dá a todas as cenas com aquele seu elegante metro e oitenta, com o seu sorriso que vai do sedutor ao triste e do simpático ao hierático sem mexer um músculo, regulando apenas o brilho dos enormes olhos azuis. E há milhões que a conhecem da TV (Nip Tuck, uma referência recente). E há a sua actividade no teatro, menos próxima, mas que sempre foi merecedora dos elogios mais ditirâmbicos e sentidos.
Neste momento, Vanessa Redgrave está em Nova Iorque, no palco no Booth Theater, dando corpo à peça de Joan Didion The Year of Magical Thinking, baseada no livro autobiográfico do mesmo nome. A peça é uma memória de luto e dor pelas mortes do marido e da filha de Didion, ocorridas com vinte meses de intervalo. Redgrave, que tem 70 anos, está a receber críticas positivas (o que é habitual) mas não entusiásticas (o que é menos habitual), que não põem em causa a excelência do seu trabalho mas a sensatez do casting (ver Ípsilon, 13 de Abril de 2007). "Redgrave é uma artista que trabalha na escala heróica. Ms. Didion é uma miniaturista", escreve um crítico do New York Times.
A voz de Didion pode não se encaixar na envergadura majestática da actriz e a escala heróica de Redgrave pode não se adaptar à peça, mas essa escala heróica é uma dimensão de que Redgrave não consegue descolar-
-se, mesmo quando o pretende. Na tela pode parecer tímida, frágil, vencida, mas há um brilho de rebeldia que está sempre no canto do olho e um levíssimo sorriso de vitória não isento de malícia à espreita nos lábios.
O que é admirável em Vanessa Redgrave é isso, esse lado indomável que faz dela, mesmo com os seus 70 anos, uma cidadã capaz de defender causas mal vistas, incómodas, esquecidas, desprezadas. Correndo o risco de cometer erros.
Durante anos, o seu "trotskismo" foi visto como uma faceta destinada apenas a dar um colorido hippie e marginal à sua burguesa condição de filha privilegiada de pais artistas famosos (os actores Sir Michael Redgrave e Rachel Kempson, Lady Redgrave), mas a actriz foi provando que havia mais na sua motivação.
O seu discurso de aceitação do Óscar, em 1978, por Julia, terminou com uma pateada de parte do público, só porque decidiu fazer uma intervenção que era não só política mas politicamente incorrecta, do tipo das que desagradam a gregos e a troianos. As suas últimas palavras foram: "Comprometo--me perante vós a continuar a lutar contra o anti-semitismo e o fascismo. Obrigado". Mas antes tinha criticado os "rufias sionistas" - numa referência aos apoiantes de Israel que sempre a detestaram pelo seu apoio à causa palestiniana e que frequentemente têm posto em causa o seu direito a interpretar determinados papéis - como o da sobrevivente de um campo de concentração nazi, num filme para a televisão com argumento de Arthur Miller, em 1980.
As causas em que Redgrave se envolveu vão desde a luta contra a guerra do Vietname nos anos 60, até ao desarmamento nuclear, passando pelos direitos dos trabalhadores dos países do Terceiro Mundo, à liberdade na União Soviética, à independência da Irlanda do Norte, à liberdade de emigração dos judeus soviéticos, aos direitos das crianças e à luta contra o trabalho infantil, à ajuda humanitária aos bósnios muçulmanos, à ajuda às vítimas de guerra e aos refugiados, à independência da Tchechénia, à denúncia dos atropelos aos direitos humanos na Rússia, à crítica à invasão do Iraque, aos atropelas às liberdades cívicas nos EUA e na Grã-Bretanha com o pretexto da Guerra ao Terror de George W. Bush... a lista continua a crescer.
Durante décadas, Redgrave foi a actriz trotskista - concorreu duas vezes ao Parlamento pelo Partido Revolucionário dos Trabalhadores (Workers" Revolutionary Party ou WRP) - que distribuía propaganda na rua, vendia o jornal do partido e debitava a cassete do partido. À boa maneira dos movimentos trotskistas, o partido fragmentar-se-ia várias vezes, entre feias acusações mútuas. Aparentemente, o pequeno partido seria financiado por pouco recomendáveis regimes árabes, com dirigentes como Saddam Hussein e Muammar Khadafi e ter-lhes-á fornecido informações sobre oponentes activos na Grã-Bretanha - uma actividade, diga-se, a que Redgrave nunca foi pessoalmente associada.
Redgrave e o seu irmão Corin (também um conhecido actor), camarada de militância, abandonaram depois o WRP. Vanessa acabaria por criar a sua própria organização, o Partido da Paz e do Progresso, dedicado à denúncia das violações dos direitos humanos.
No percurso político de Vanessa Redgrave há imensos gestos criticáveis, ridículos, imprudentes, disparatados, profundamente irrazoáveis. Mas nos gestos e nas palavras desta mulher - que, aos 69 anos de idade, foi considerada, para sua surpresa, uma das 100 pessoas mais bonitas do mundo pela revista People - não há cálculo nem falta de generosidade.
"Ao longo da minha vida fui-me apercebendo de que as pessoas percebem o que eu tentei fazer, por muito desajeitada que eu tenha sido", disse em 2005 a Larry King, numa entrevista à CNN. "Acho que as pessoas me compreendem e percebem por que é que eu tento fazer o que tento fazer. Sinto-me muito inepta, mas sinto que tenho o dever de tentar. Penso que qualquer cidadão percebe que é preciso levantarmos a voz e fazer o que for possível para denunciar aquilo que está mal".
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