Texto publicado no jornal Público a 28 de Fevereiro de 2006
Crónica 9/2006
A gripe das aves surgiu em 1997, mas foi só em 2003 que chegou às primeiras páginas dos jornais. País a país, os últimos anos e meses vêm mostrando a mancha da contaminação com o vírus H5N1 a alastrar pelo mundo, começando na Ásia, para se estender às aves selvagens de vários países europeus e para, na semana passada, chegar à primeira exploração aviária na União Europeia, em França.
O que dizem os especialistas? Que esta epidemia (por enquanto apenas das aves) pode dar origem a uma pandemia humana, caso o vírus sofra mutações que lhe permitam passar de humano para humano (por enquanto os doentes foram infectados por aves doentes). Que ninguém pode prever a dimensão dessa pandemia mas que ela pode atingir proporções catastróficas, com muitos milhões de mortos. Que não há vacina para esse vírus, ainda desconhecido. Que ninguém pode prever a eficácia do único medicamento actualmente disponível no mercado contra esse futuro vírus mutado. Que a quantidade de medicamentos disponível, no mundo ou na Europa, é insuficiente para combater uma epidemia em grande escala.
Os ministros da saúde europeus (e o ministro português) continuam a dizer meias-verdades ao público, perante o silêncio cúmplice da maior parte dos especialistas: dizem que alguns cuidados de higiene podem evitar o contágio a partir de animais doentes, dizem que basta aquecer a carne das aves a 70 graus para destruir o vírus e para anular o contágio pela via alimentar, dizem que a gripe das aves é uma doença animal e que nada prova que se transforme numa doença humana. Isto é tudo verdade, mas escamoteia questões centrais: a alta probabilidade de mutação do vírus (eventualmente através de um estágio em porcos) e de que uma dessas mutações se torne transmissível entre humanos. Se isso acontecer (e não é improvável, pois aconteceu na gripe de 1918), a alta mortalidade que a actual estirpe das aves causa entre humanos faz recear uma catástrofe.
Os ministros da Saúde da União Europeia decidiram lançar uma "campanha de informação" para evitar a"incerteza e pânico" que sentem alastrar entre a população. A campanha é bem-vinda. Em Portugal a propaganda sanitária e a educação para a saúde são praticamente inexistentes e é bom que algo se faça.
Mesmo adoptando a posição de avestruz dos ministros europeus, com a cabeça bem enfiada na areia e rezando para que a gripe das aves continue a ser apenas uma gripe das aves, há conselhos sanitários que deviam estar a ser dispensados de forma sistemática à população e que não o estão a ser.
As autoridades sanitárias, nestes casos, costumam ser lestas a pedir o apoio dos media para que estes façam o trabalho que lhes compete a elas. Mas não cabe aos media fazer propaganda sanitária (é propaganda porque o que se pretende é incutir comportamentos). Os media devem alertar para o risco de que os excrementos de aves infectadas possam transmitir o vírus – mas isto é uma notícia que se dá uma vez. Depois disso, cabe às autoridades sanitárias fazer campanhas nas escolas, acções de formação a agricultores e caçadores, pôr cartazes nos jardins e publicar anúncios nos jornais explicando os riscos e os cuidados a ter quando as crianças vão dar de comer aos patos.
Os media fazem o que podem e têm uma tradição de extrema generosidade nestes casos, cumprindo um papel de serviço público que raramente lhes é reconhecido (e que não é pago) mas não podem fazer o trabalho da Administração Pública, dos técnicos de saúde, das escolas de medicina ou de saúde pública ou dos centros de saúde. Resta-nos esperar que Correia de Campos não queira ficar na história como o ministro da Saúde que podia ter evitado uma catástrofe e não o fez. É que desta vez não se pode dizer que a gripe das aves não tenha dado bastante pré-aviso. Há anos que estamos a ser avisados.
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