por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 7 de Fevereiro de 2006
Crónica 6/2006
A liberdade de expressão não é um prémio para quem tenha dado provas de responsabilidade: é um direito
1. Se alguma coisa tornou evidente o caso dos cartoons publicados pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten foi a reduzida visibilidade, margem de manobra e peso político dos chamados “muçulmanos moderados” não só nos países de maioria muçulmana, mas também nas diásporas dos países ocidentais.
Que muitos muçulmanos tenham ficado ofendidos com os cartoons compreende-se. Não só existe um interdito religioso sobre a representação de Maomé, como pelo menos um dos desenhos pode considerar-se difamante. O que é preocupante é a incapacidade mostrada pela esmagadora maioria dos muçulmanos que se manifestaram sobre esta questão para separar as águas entre:
a) as obrigações religiosas dos muçulmanos e as obrigações de conduta dos crentes de outras fés ou não crentes, que não estão obrigados ao interdito da não representação de Maomé
b) as obrigações religiosas dos crentes muçulmanos e as leis civis das democracias, que não podem instituir a proibição de retratar Maomé ou de satirizar esta ou outra figura religiosa
c) a acção do Estado e os actos de um grupo de cidadãos que exprimem as suas opiniões na imprensa, cujas posições não responsabilizam ninguém além deles próprios
d) e, finalmente, entre as responsabilidades do poder executivo e as prerrogativas do poder judicial, ao qual seria normal que as comunidades ofendidas se tivessem dirigido solicitando
reparações (por parte dos autores dos cartoons ou de quem os difundiu).
O que ficámos a saber foi que um número elevado de governantes, líderes religiosos, responsáveis políticos e órgãos de imprensa muçulmanos considera que os preceitos religiosos da sua religião devem ser impostos em todo o mundo e a todas as pessoas — mesmo àquelas que não professam a sua religião — com a força de uma lei universal e sancionados com penas de rigor medieval.
Que haja quem pense assim não espanta ninguém. O que é surpreendente é que os exemplos de moderação vindos do mundo islâmico se resumam à condenação da violência física, do apelo ao assassinato dos cartoonistas e do incêndio de embaixadas.
É evidente que isso é importante, mas a questão é que não há uma voz no mundo islâmico que seja capaz de condenar estes cartoons e de, simultaneamente, defender o seu direito a serem publicados. Estamos muito, muito longe de Voltaire.
2. Em virtude das reacções violentas no mundo muçulmano, não tem faltado quem, no Ocidente, tenha criticado a falta de “prudência” ou de “respeito” que os cartoonistas e jornais teriam demonstrado nesta área tão sensível, lembrando que a liberdade se deve sempre conjugar com responsabilidade. Estes comentários cheiram de longe a enxofre. Em democracia, a liberdade de expressão não é um prémio para quem tenha dado provas de responsabilidade: é um
direito básico de todos, mesmo dos irresponsáveis.
E a liberdade de imprensa não é um direito reservado aos jornais com bom gosto. Como se tratam os abusos? Nos tribunais, para onde seria normal que as comunidades muçulmanas tivessem arrastado o Jyllands-Posten e os seus cartoonistas.
3. Os líderes europeus que tentam comprar a pacificação árabe condenando a publicação dos cartoons prestam o pior serviço possível à democracia. O que se espera deles é que afirmem o direito que os cartoons têm a ser publicados, que expliquem como esse direito é fundamental para todas as liberdades (incluindo a religiosa) e que mostrem como a expressão de uma opinião é independente da acção do Estado e mesmo do sentimento de uma comunidade.
Que o Jyllands-Posten não seja inocente em toda esta polémica e que o primeiro-ministro dinamarquês, Anders Rasmussen, também não o seja (como parece não ser) é aqui secundário. Tal como aos muçulmanos, vale a pena explicar aos políticos europeus que a liberdade de imprensa não se deita para o lixo, quando acontece estar ao serviço de ideias que não nos agradam.
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