Texto publicado no jornal Público a 21 de Fevereiro de 2006
Crónica 8/2006
Ninguém tem o direito a não ser criticado, a ver as suas preferências, opiniões ou crenças protegidas de ataques, sátiras ou sarcasmos.
"Esperamos que já tenha passado o tempo em que era necessário defender a 'liberdade de imprensa' como garantia contra os governos tirânicos ou corruptos.1. Hoje parece evidente a todos que a liberdade de expressão e as liberdades cívicas em geral estão sujeitas, nos países democráticos (já para não falar dos outros), a um ataque tão sério como aquele a que estiveram noutros séculos, com a agravante de hoje as forças que defendem a supressão dessas liberdades se encontrarem não apenas no topo de instituições como os Estados ou as Igrejas, mas constituírem a maioria em muitas das nossas sociedades democráticas.
Hoje já não são necessários argumentos para evitar que uma legislatura ou um Governo [...] se permitam ditar a um povo as suas opiniões ou decidir que doutrinas e que argumentos é que esse povo deve ser autorizado a ouvir."
John Stuart Mill, "On liberty", 1859
A polémica dos cartoons de Maomé teve o pedagógico efeito de nos mostrar como a liberdade de expressão e de imprensa está longe de estar garantida mesmo nas nossas sociedades democráticas e como muitos dos nossos concidadãos aceitam que ela seja limitada por puro medo ou "para não ofender os outros".
De facto, a liberdade de expressão não pode ser apenas a liberdade de dizer aquilo que os outros esperam ou desejam de mim, nem aquilo que os outros querem ou estão dispostos a aceitar. A liberdade de expressão não é a liberdade de ser bem-comportado, mas precisamente o contrário: é a liberdade de fazer o que os outros não esperam e não desejam, de ser inconformista, inconveniente, irreverente, indesejado – e criticado por isso, naturalmente.
Ninguém tem o direito a não ser criticado, a ver os seus actos, discursos, preferências pessoais, opiniões políticas ou crenças religiosas protegidas de críticas, ataques, sátiras e sarcasmos. E esse direito não existe porque isso seria proibir toda a crítica. O direito à crítica tem de ser universal – e não significa de forma alguma limitar a liberdade do outro.
É evidente que deve haver limites à liberdade de expressão: quando ela se transforma na incitação à prática de crimes ou na acusação da prática de crimes, por exemplo. E para sancionar esses casos (e verificar se se trata de instâncias desse tipo) existem os tribunais.
A vergonhosa busca ao jornal "24 Horas" e a acusação aos seus jornalistas no caso do "envelope 9" não constitui senão outra faceta desta ofensiva abusiva dos poderes contra a liberdade de expressão.
2. Entre os mais graves ataques actuais das democracias contra as liberdades individuais conta-se os que a administração americana leva a cabo nas suas prisões contra aqueles que considera suspeitos de actividades terroristas. É esse o caso de Guantánamo (que a ONU quer ver encerrada) e de outras prisões clandestinas espalhadas pelo mundo, onde existem fortes razões para acreditar que é praticada a tortura. Uma dessas prisões de localização desconhecida, com o nome de código "Bright Light", cuja existência foi denunciada por um jornalista do "The New York Times", James Risen, é descrita por um elemento da CIA como "um sítio de onde não se regressa".
3. Na mesma linha e também pela mão da administração de George W. Bush, o programa de espionagem da National Security Agency, que permite escutar e escrutinar comunicações telefónicas ou por e-mail e as transacções bancárias electrónicas de todos os cidadãos americanos sem aprovação judicial prévia, está a levar a cabo aquilo que nem o Big Brother sonhou. Não se trata de vigiar apenas os inimigos ou os suspeitos, mas todos os cidadãos, em busca de tudo o que possa interessar o poder. O que Bush está a fazer é como mil Watergates em simultâneo, perante (por enquanto) a passividade do Congresso, do Supremo Tribunal e da maioria dos cidadãos americanos.
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