por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 7 de Março de 2006
Crónica 10/2006
A única maneira de evitar a possibilidade de ser ofendido, é aceitar a certeza de ser escravizado.
As questões da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa e dos seus limites continuam a alimentar muitas conversas. O assunto não se consegue esgotar, tanto mais que as linhas de clivagem atravessam grupos e ideologias estabelecidas e descobrimos por vezes nessas discussões proximidades insuspeitadas ou distâncias surpreendentes, que nos obrigam a redesenhar cuidadosamente os mapas de valores de cada um, sem poder seguir a grelha conhecida de latitudes e longitudes, sondando cuidadosamente a profundidade das águas em cada baía, prolongando as linhas de rumo de cada raciocínio, como se desenhássemos de novo sobre um pergaminho uma carta portulano medieval.
Numa dessas discussões em que participei, alguém referiu, a propósito (ou a despropósito) da liberdade de expressão (que defendo), os Códigos de Praxe e as práticas associadas (que não defendo). Devo dizer desde já que partilho, quanto às chamadas "praxes académicas", a opinião de José Mariano Gago que as rotula sem ambiguidade de "práticas fascistas". É o que são em muitos casos, se não em todos. E quem tiver dúvidas pode ler, entre outros, o Código de Praxe da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (http://home.utad.pt/~cv) onde pode encontrar pérolas como "O caloiro não tem direitos nem voz activa, excepto os consagrados pelo presente Código de Praxe".
Porque é que a praxe ofende os direitos? Porque é que não é apenas uma brincadeira aceitável em nome da liberdade de expressão? Porque ela impõe uma prática de submissão, porque ela obriga os estudantes mais novos a humilhar-se e a submeter-se aos abusos dos mais velhos. Porque ela limita de facto a liberdade dos outros, além de ofender a sua dignidade. Há na praxe não apenas uma ideia de prova de iniciação mas um real abuso do mais fraco, o que é ignóbil. É por isso que a praxe não devia existir (pelo menos nessa forma) e é por isso que não tem lugar numa universidade. E isso não devido a um qualquer direito à censura (que não existe), mas devido às obrigações da Universidade perante a sociedade, aos valores que deve assumir e promover. Mas atenção: que um qualquer saudosista proponha no seu site um tal código de praxe é algo a que essa pessoa terá evidentemente direito.
Da mesma forma, não é o facto de um "jornal sério" se negar a publicar os cartoons de Maomé que prova que eles não têm o direito a ser publicados. Um jornal (ou um cidadão) consciente não explora sempre até ao limite todas as suas liberdades. Há coisas que temos o direito de fazer e escolhemos não fazer – isso é parte integrante da liberdade. O direito não tem de ser utilizado para existir, nem prescreve por não o ser, ainda que por vezes deva ser usado por pura reivindicação da sua existência.
A praxe é condenável porque nela se obriga alguém (por coacção física ou pressão dos pares), mas o uso da liberdade de expressão não restringe a liberdade de ninguém.
Há quem tente comparar o comportamento do "cartoonista" (usemos expressões de código por facilidade de linguagem) que não aceita ser calado, ao do "muçulmano" que não aceita ser ofendido. A analogia está ferida porque os comportamentos não são simétricos. Enquanto que a acção do muçulmano nesta parábola pretende forçar o cartoonista e restringir os seus movimentos, a acção do cartoonista não força nem limita o muçulmano. E esse respeito da liberdade (de ambos os interlocutores neste confronto) é, nas democracias liberais, mais importante que o risco de ser ofendido. É que a única maneira de evitar a possibilidade de ser ofendido, é aceitar a certeza de ser escravizado.
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