por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 21 de Março de 2006
Crónica 12/2006
À medida que os critérios do marketing se vão alargando a todas as áreas da actividade humana, ficamos mais e mais mergulhados em bullshit.
O título desta crónica pretende traduzir o de um pequeno livro recentemente publicado, da autoria do filósofo americano Harry G. Frankfurt: "On Bullshit".
O livro poderia ser humorístico mas não é. Ainda que o título faça sorrir, o seu autor, que é um reputado professor de filosofia de Princeton, tenta responder a questões sérias como: O que é? Por que é que há tanto? Que função social serve? O que significa para nós?
Como o autor explica, apesar da enorme quantidade de bullshit ser uma das características mais marcantes da nossa cultura, ele não tem sido objecto de estudo profundo e, por esse facto, "não existe uma teoria" do bullshit, o que é paradoxal considerando a sua ubiquidade. "Mesmo as questões mais básicas continuam não só sem ser respondidas mas até sem ser perguntadas", escreve Frankfurt.
O livro, composto apenas por um ensaio anteriormente publicado numa revista da Universidade Rutgers, mereceu rasgados elogios da crítica e lê-se com agrado, mas deixa um sabor a pouco: Frankfurt faz uma tentativa de definição mas não leva a empresa até ao fim e não chega a abordar a função do bullshit. Mesmo a interessante comparação entre bullshit e mentira mereceria mais.
Frankfurt considera o bullshit uma "ameaça mais insidiosa para a verdade que a mentira", pois o bullshit não só está totalmente "desligado de uma preocupação com a verdade" - enquanto os mentirosos podem manter uma ideia clara da verdade – como é objecto de uma estranha tolerância (enquanto a mentira é vista em geral sem benevolência).
O que é extremamente refrescante no livro de Frankfurt é o facto de ele reconhecer uma tendência – de identificar o bullshit não como um desvio, mas como algo central no discurso moderno.
Uma das funções dos filósofos é esclarecer conceitos e temos de agradecer a Frankfurt ter-se apercebido de que o bullshit não é uma falha mas uma nova norma, não um lapso mas um novo código – que merece o escrutínio dos pensadores e dos cidadãos. Ainda que não seja claro se há algo que se possa (ou deva) fazer a respeito do bullshit.
Segundo Frankfurt, os paradigmas clássicos do bullshit podem encontrar-se "nos domínios da publicidade e das relações públicas e na estreitamente relacionada área da política". Porquê? Porque uma das características do bullshit é que ele visa esconder o que o seu autor realmente pretende. Como explica Frankfurt numa entrevista disponível no site da Universidade de Princeton, quando se quer vender alguma coisa o objectivo é vender, "não é dizer a verdade sobre o produto". E, à medida que os critérios do marketing se vão alargando a todas as áreas da actividade humana, ficamos mais e mais mergulhados em bullshit.
Outra das razões para o aumento do bullshit, ainda segundo Frankfurt, é o facto de a sociedade actual exigir de todos que tenhamos opinião sobre tudo, mesmo sobre aquilo que desconhecemos – o que constitui uma excelente oportunidade para bullshit. Neste contexto, é evidente que o mundo dos media constitui um excelente caldo de cultura de bullshit.
Quando Orwell lançou o seu clarividente conceito de "newspeak" este estava em plena floração estalinista (antes de se alargar a toda a política), mas tratava-se de um fenómeno ideológico. Com o primado do marketing e da gestão da imagem, a conversa da treta (os diálogos de António Feio e José Pedro Gomes são um marco) conquistou prosélitos que alastraram da economia para o todo social: um despedimento colectivo tornou-se uma "reestruturação"; um erro, uma "oportunidade de melhoria"; o discurso tornou-se uma venda e a comunicação uma hipocrisia.
Com este livro, o estudo do bullshit ganhou respeitabilidade. O risco é que a própria essência da treta beneficie do estatuto.
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