por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 25 de Julho de 2006
Crónica 28/2006
A imposição de um código de indumentária visa criar um clima de repressão e de limitação da liberdade individual
O presidente da Assembleia Legislativa da Madeira, Miguel Mendonça, decretou na semana passada um "regulamento de acesso" às instalações parlamentares que impede os operadores de imagem e repórteres fotográficos de entrar no Parlamento regional com "vestuário considerado inadequado". Entre esse vestuário inadequado Miguel Mendonça inclui "por exemplo, t-shirts e sapatilhas desportivas". Quanto aos jornalistas que cobrem o Parlamento, o documento recomenda "indumentária consentânea com a dignidade" do Parlamento, sem proibir peças de vestuário em particular. Alberto João Jardim aplaudiu a medida.
Não é preciso puxar muito pela cabeça para constatar a vacuidade do documento – que se compreende que tenha encontrado eco na mente de Alberto João Jardim. É evidente que não é preciso grande imaginação para criar indumentárias não consentâneas com a dignidade do Parlamento que não incluam T-shirts nem sapatilhas, assim como é possível encontrar inúmeros exemplos de elegância e dignidade entre pessoas que ostentam estas peças de vestuário.
A imposição de um "dress code" – expressão nascida no final dos anos 60 mas que os "yuppies" introduziram no léxico empresarial – é comum a muitas organizações e tem razões claras: criar um clima de repressão e de limitação da liberdade individual ou ser usado como ferramenta de segregação e desigualdade social.
Os exemplos abundam agora e desde sempre: nas sociedades islamistas o código indumentário imposto às mulheres é um símbolo e um agente da sua inferioridade social e da sua submissão pessoal, como nos anos sessenta do século passado o foi o uso obrigatório da saia pelas mulheres em tantas instituições e empresas, como na IBM filo-nazi dos anos 30 o fato completo e as ligas dos vendedores sempre homens, sempre brancos e sempre louros representavam o molde autoritário da empresa.
Nos anos 60 e 70, na Europa e nos Estados Unidos, a luta pelos direitos cívicos confunde-se com a luta pelo direito a usar cabelo comprido e a usar a roupa da cor que se quisesse.
É evidente que todas as sociedades têm regras de indumentária (práticas ou de bom senso, de decência ou do bom gosto), mas pretender transformar em código escrito essa regras fluidas e sujeitas a permanente renegociação informal, é o que caracteriza as sociedades totalitárias.
Bill Gates gabava-se, alguns anos atrás, que o único "dress code" que a Microsoft possuiu, nos primórdios da empresa, foi uma vez em que escreveu uma mensagem aos trabalhadores pedindo-lhes que não viessem trabalhar descalços. Claro que isso já foi há muitos anos e muitos neurónios desapareceram da cabeça do fundador da Microsoft desde essa data, mas a história diz alguma coisa. Não é por acaso que a liberdade de indumentária aparece tantas vezes associada à criatividade – seja nos artistas, nos cientistas ou nos pensadores em geral. É que a liberdade é condição da criatividade – que, já agora (diga-se para benefício dos tecnocratas) é condição da inovação, que é condição da competitividade, etc.
As razões para essa liberdade, porém, estão a montante destas razões comerciais – são a dignidade humana, o direito a ser e a ser o que se é. Que a sede do poder republicano, como é um parlamento, seja submetida a esta violação mostra a que ponto chega a desfaçatez jardinesca, alimentada como se adivinha pelas veleidades ruifluviais do continente, militantemente anti-imprensa e anti-liberdade de expressão.
Que a Justiça faça alguma coisa já não se espera, mas terá o Presidente da República algo a dizer sobre as liberdades constitucionais? Ou vai esperar que o acesso ao Parlamento seja reservado por diploma aos homens brancos católicos, pais de família, proprietários de terras e portadores de gravata?
PS: O meu corrector ortográfico, atento observador da política nacional, propõe-me "rufiáveis" em vez de "ruifluviais". Hesito, mas prefiro ruifluviais.
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