por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 1 de Agosto de 2006
Crónica 29/2006
"Não gostamos de ver uma criança tornar-se numa vítima da guerra, mas..."
Uma criança morta. As duas palavras pertencem a dois universos que não se deviam tocar, o seu encontro é uma violação, o ponto indizível do horror e da tristeza. Algo que apenas devia acontecer por um erro do destino, um acidente da natureza.
É impossível aceitar que a criança que pende daqueles braços como que a dormir está morta. É impossível aceitar que amanhã outra estará pendurada de outros braços, com o mesmo abandono. É impossível admitir que alguém lhe roubou a sua vida, que alguém nos roubou a sua vida. Em nome de que ajuste de contas se rouba a vida a uma criança?
É importante olhar para esta criança que pende destes braços nesta fotografia. Olhar para as suas mãos, para os dedos dos pés descalços, para a cara suja de terra. Olhar para esta criança, precisamente para esta criança, e imaginar o que fazia antes de a bomba lhe cair em cima. É importante imaginar apenas esta criança, antes de ter os pés e as mãos pendurados e a cara suja de terra. Porquê apenas esta? Porque não conseguimos imaginar 30 crianças mortas. Porque 30 crianças mortas é demasiado para conseguirmos imaginar como seriam antes de a bomba cair e passamos a focar-nos no número. Passam a ser 30 mortos. Como nas outras, muitas outras notícias: ..."vítimas do atentado, entre as quais várias crianças"...
Porquê este luto? Significa que este ataque do exército israelita é mais vil, mais desumano, que os ataques a que a sua população civil e as suas crianças são sujeitos? Significa que as bombas e os ataques suicidas do Hezbollah ou do Hamas ou de outros grupos terroristas são mais aceitáveis? Significa que há ataques a civis justificados de um lado e ataques a civis injustificados do outro? Significa que uns são ataques e outros "respostas" ou "retaliações"? Significa que uns são "ataques" e outros "defesas"?
Não. Os ataques a civis são exactamente iguais. Todos têm a mesma vileza, a mesma desumanidade. Todos demonstram desrespeito pela vida, pela lei internacional e até pelas leis da guerra, todos matam crianças. Significa que todas as partes abdicam da sua humanidade.
O terrorismo responde ao terrorismo – porque ambas as partes querem espalhar o terror nas populações, porque ambas estão empenhadas em destruir o outro lado sem olhar a meios, porque ambas as partes acham que as crianças são vítimas úteis se os ajudarem a atingir os seus objectivos (mesmo quando não o confessam), porque ambas as partes usam civis nas suas chantagens (não se esconde o Hezbollah entre civis? Não diz o governo israelita ao governo libanês que podia evitar a morte de civis se controlasse o Hezbollah?).
Como se pode dizer, como Shimon Peres, "não gostamos de ver uma criança tornar-se numa vítima da guerra, mas...", seja o que for que vem depois do "mas"?
No diálogo com o Ocidente o governo israelita usa a carta do seu regime democrático mas recusa o compromisso moral que está na base da democracia: tentar, com todas as forças, resolver os seus conflitos por meios pacíficos. Aí escolhe a pena de talião – sem se aperceber de que esta traz com ela o anátema da identificação com o adversário. Se a pena de talião fosse aplicada apenas aos que a atacam, Israel poderia ter argumentos. Mas quando essa vingança se alastra aos pais, aos vizinhos e aos filhos dos vizinhos dos seus inimigos, quando a vingança substitui a moralidade e se transforma no quotidiano da acção de um regime, isso apenas significa que a banalidade do mal infectou quase todo um povo – quase todo, porque há ainda homens e mulheres de boa vontade que restam em Israel – e o Kaddish que dizemos pelas crianças libanesas, palestinianas e israelitas se transformou na oração de defuntos pelas almas dos seus pais.
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