por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 29 de Agosto de 2006
Crónica 30/2006
É indesmentível que a omissão deste episódio nos relatos da vida de Grass deve ser criticada.
A propósito da recente divulgação pelo escritor Günter Grass da sua participação nas Waffen-SS quando jovem, não faltou quem considerasse o silêncio que o escritor manteve durante sessenta anos sobre este episódio da sua vida como uma falta particularmente grave devido ao facto de Grass sempre ter insistido no dever de memória do povo alemão em relação ao nazismo.
Para estes críticos, a diferença manifestada entre prédica e prática por Grass seria o sinal de uma descarada hipocrisia que demonstraria a absoluta falta de autoridade moral do homem e do escritor.
No entanto, como este tipo de reacção veio principalmente de quem não demonstra grande simpatia pelas posições políticas do escritor, é difícil acreditar na total boa-fé desses comentários.
Por outras palavras: é difícil acreditar que, se Grass sempre tivesse defendido o esquecimento e o perdão em relação ao nazismo, os actuais moralizadores não vissem no episódio Waffen-SS a raiz secreta dessa atitude e não condenassem o escritor com uma particular veemência por defender uma posição pretensamente moral apenas para benefício próprio e lavagem da sua própria história. Numa terceira hipótese, se o escritor sempre tivesse contornado o tema do nazismo na sua obra e na sua acção cívica (o que teria sido difícil para um escritor alemão nascido em 1927), é igualmente difícil acreditar que os actuais críticos não o condenassem também de uma forma particularmente viva precisamente por isso, vendo nessa omissão uma forma interesseira de camuflar a mancha vergonhosa da sua folha militar.
Posto isto, é indesmentível que a atitude de Grass é criticável. A omissão deste episódio nos relatos da sua vida é uma mentira e deve ser como tal criticada. A questão aqui é o grau que deve merecer essa crítica - e não saber se o apreço que nos merece o escritor deve ser ou não posto em causa, nem outras bizarrices como discutir se ele deveria devolver o Nobel ou outras distinções literárias.
Essa avaliação não deve esquecer, porém, que é prática comum omitir dos relatos de vida ou dos currículos profissionais os episódios menos brilhantes e que isso apenas é criticável neste caso por se tratar de uma figura com uma actividade pública directamente relacionada com o assunto do episódio escamoteado.
A razão apresentada por Grass para o segredo é clara: a vergonha. Quando se tornou evidente para si o significado das Waffen SS e do próprio regime nazi (que era público e notório que apenas tinha surgido no espírito de Grass depois do fim da guerra), o sentimento que lhe ficou da sua adesão e da sua passagem por aquele corpo foi de vergonha – e escondeu-o até o conseguir admitir publicamente.
Repito que o acto é criticável, porque a mentira é moralmente criticável – Kant já deu os argumentos – mas a razão é compreensível e humana. E é de notar que tenha sido o próprio Grass a confessar a sua falta - que é, esclareça-se, a sua omissão do episódio e não o episódio em si, que dificilmente se pode considerar que tenha tido lugar em situação de consentimento informado.
O que me parece importante realçar nesta história, porém, não é a oposição que existe entre o segredo de Grass e a sua defesa da necessidade de encarar o passado, mas a forte relação que também existe entre ambos os factos. Essa necessidade, que Grass coloca na primeira linha do dever cívico e moral, foi claramente sentida pelo escritor de uma forma particularmente dolorosa e pessoal, como hoje percebemos. E não se pode deixar de ver na confissão agora feita e na sua militância pelo dever de memória como uma atitude de onde não está ausente um acto pessoal de contrição.
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