por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 5 de Setembro de 2006
Crónica 30/2006
"A sorte deles é que eu tenho contas para pagar e uma família para sustentar"
O relato desfiava uma série de acidentes de percurso e vicissitudes num pano de fundo de fricções com diferentes instituições e autoridades, onde se misturavam descrições de abusos de poder, de pequenas infâmias e médias corrupções, papéis entregues fora de prazo, repartições kafkianas, acordos orais desrespeitados e taxas inesperadas.
O motorista de táxi contava as peripécias num fluxo furioso ininterrupto, como se falasse para si próprio, entrecortado com os habituais remoques "Vocês é que deviam pôr estas coisas nos jornais", "Era bom era que isto se soubesse".
"Isto" não era porém fácil de identificar e menos ainda de denunciar. Apareciam uns "eles" que por vezes eram a Câmara, outras a polícia, outras os fornecedores ou os credores e o relato não era sempre claro. O facto é que o homem culpava algumas das mais representativas instituições da vida democrática e económica de serem responsáveis por ter sido obrigado a abandonar o seu pequeno negócio, um quiosque, que tinha inicialmente passado para a sua mão através de um contrato de subaluguer aparentemente irregular que ele não tinha conseguido regularizar apesar de pressões e promessas várias. Alguns dos pormenores eram inverosímeis - informações erradas dadas por diversas instituições, garantias privadas de funcionários que se vieram a revelar irrealizáveis, prazos impossíveis de cumprir, etc. Mas como sabe qualquer pessoa que se tenha cruzado com a burocracia desmiolada de algumas organizações, inverosímil está longe de querer dizer falso.
"Sabe o que é eu gostava?" Não sabia, mas a resposta não foi inesperada: "O que eu gostava era de ganhar o Euromilhões!". Mas antes que tivesse tempo de responder que com um prémio do Euromilhões se pode de facto comprar um belo quiosque...
"Se eu ganhasse o Euromilhões, era ainda pior que o Bin Laden... Estes gajos todos haviam de ver... havia de rebentar com eles todos à bomba." A voz tinha subido de tom e o rubor de intensidade. "Era mais terrorista que a Al-Qaeda. Eles haviam de ver! O Bin Laden ainda é bom para eles".
A cólera não permitia águas na fervura do género "de facto, isso é muito chato, mas o importante...". Deixei o gás sair até chegar ao destino, reagindo com um mínimo de monossílabos, mas o fervor radical não tinha diminuído mesmo depois da corrida paga.
"A sorte deles é que eu tenho contas para pagar e uma família para sustentar. O Bin Laden, esse pode, porque é rico! Mas eu tenho de andar aqui o dia todo agarrado à roda para ganhar o sustento. Mas se eu tivesse dinheiro... ai se eu tivesse dinheiro, o terrorista que eu não havia de ser!" Não havia um fio de ironia na voz.
Que as circunstâncias fazem o terrorista já se sabe, mas era a primeira vez que me tinha cruzado com uma vocação tão fervorosa frustrada pela falta de dinheiro e com uma utilização tão original de um prémio do Euromilhões. Era a primeira vez que me cruzava com alguém que só não era terrorista porque não tinha dinheiro para isso.
Fiquei com pena de que a conversa não tivesse sido ouvida pelos muitos comentadores políticos cujo fanático determinismo histórico os leva a considerar que a explicação das causas de um comportamento equivale a uma justificação moral desse comportamento. O que o meu taxista demonstrava era que a frustração (seja qual for a causa) pode dar origem a comportamentos de agressividade difusa (o que Wilhelm Reich explica aliás de forma interessante num velho texto sobre o esquerdismo) e que não espanta que alguém que se sente perseguido, humilhado, acossado e sem saída, responda com a agressividade que tiver à mão. No caso do meu taxista, por enquanto, é a peroração sanguínea, mas se ele ganhar o Euromilhões...
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