por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 11 de Julho de 2006
Crónica 26/2006
O desporto não é apenas o mérito dos vencedores. É o mérito dos que conseguem fazer um pouco melhor, dos que nunca desistem.
O conceito de desporto transporta consigo valores centrais na sociedade e alguns que representam grande elevação moral: a ideia da mente sã em corpo são, a pulsão para dar o melhor de si, o dever de exigir de si antes de exigir dos outros, a definição de objectivos nunca antes alcançados, a disciplina do treino, o desenvolvimento da autonomia pessoal mas também a capacidade de jogar em equipa e de confiar nos companheiros, a capacidade de sacrifício, o gosto da competição e a paixão da vitória aliada ao respeito pelos adversários e pelas regras, etc.
Claro quer nem tudo isto se sente no futebol profissional e daí que este desporto não seja considerado a escola de virtudes que o ideal olímpico pretende que o desporto deve ser. Os próprios Jogos Olímpicos deixaram de poder ser considerados essa escola de virtudes.
Apesar disso, todos mantemos uma ideia do que deve ser o desporto e do que significa jogar com dignidade – ainda que entre o nosso desejo de lealdade e o nosso gosto pela vitória se instale uma fricção cujo vencedor é sempre duvidoso. Claro que aplaudimos o jogador que lança a bola fora para que um adversário seja assistido dentro do campo, mas estamos dispostos a jurar que aquela mão dentro da área foi uma malévola invenção do árbitro – pois, se bem que ela até se veja nos "replays", era impossível que o árbitro a tivesse visto do sítio onde estava.
A noção de que as regras se podem dobrar um bocadinho atinge um máximo em ocasiões onde as apostas afectivas (ou outras) são especialmente altas - como num campeonato mundial. Mas, apesar de todas estas violentas paixões e deste quadro de confronto que muitos consideram o substituto moderno da guerra, todos continuamos a saber o que é jogar com dignidade. É o jogo onde se vê competência técnica, esforço, disciplina, criatividade, lealdade para com adversários e a paixão da vitória – mesmo que esta não se atinja.
Vem isto a propósito dos desiludidos com o resultado da selecção que se recusam a considerá-la uma "vitória moral" – o eufemismo com que há uns anos se designavam as derrotas. De facto a participação da selecção portuguesa não tem nada de "vitória moral" – foi uma participação digna e com qualidade. E isso é honroso em si. E seria particularmente honroso se não tivesse havido aquela triste exibição com a Holanda, com o seu triste recorde de acções disciplinares e a triste cabeçada de Figo, mas as exibições seguintes fizeram o possível para apagar essa memória.
Que um quarto lugar não é tão galvanizador como uma vitória é evidente – mas o desporto não é apenas o jogo dos que ganham. O desporto não é apenas o mérito dos vencedores. É o mérito dos que treinam, dos que tentam, dos que se esforçam, dos que conseguem fazer um pouco melhor, dos que nunca desistem, dos que jogam e dos que correm até ao fim, mesmo quando não ganham o primeiro lugar. E isso é honroso. Não é a treta da vitória moral à antiga portuguesa, nem é a treta do "number one " à americana, onde não há memória para o número dois – é a vida vivida com dignidade. E há dignidade para além da vitória e da derrota.
A vitória é tão importante que não haveria dignidade em não a perseguir até ao limite das forças, mas não é a vitória que confere dignidade ao vencedor, é a dignidade que confere sabor à vitória.
A pequena cabeçada de Figo e a grande cabeçada de Zidane, sejam quais forem as suas causas e sejam quais forem os méritos dos jogadores, são (entre outras) acções que mancham o desporto. E as acções dos que não perdem a cabeça e continuam a tentar mesmo quando as coisas não correm pelo melhor marcam os verdadeiros campeões. São raros? São ainda mais raros do que pensávamos. São raríssimos. Mas gostamos de pensar que existem algures. É por isso que a eleição de Zidane como o melhor do Mundial depois do que fez só mancha o desporto, o futebol, o Mundial, a FIFA e os jornalistas enviados para cobrir o Mundial que o elegeram. É uma vitória imoral. Também as há.
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