terça-feira, julho 04, 2006

As águas do Douro

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 4 de Julho de 2006
Crónica 25/2006

Os portuenses terão a certeza de que esta é a imagem que querem dar do Porto?

A notícia de que a Câmara do Porto exige às entidades receptoras de subsídios municipais a assinatura de um protocolo onde estas se comprometem a não "criticar publicamente o município" é chocante num grau raramente atingível em democracia.

O facto é duplamente chocante porque se trata não apenas de um atropelo dos mais elementares direitos cívicos mas de uma violação levada a cabo por uma instituição política, eleita democraticamente e de funcionamento colegial. O atropelo não se deve assim apenas a um deslize, mas a um entendimento distorcido do funcionamento das instituições políticas, que criou uma cultura de perversão e de abuso no seio de toda uma autarquia – como se viu na votação que aprovou o procedimento. Trata-se de uma perversão enraizada em todo um corpo político.

O facto é ainda mais chocante porque, quando foi exposto pelos media, o presidente do Câmara do Porto, Rui Rio, o defendeu com uma inesperada desfaçatez, invocando mesmo critérios de ordem jurídica e da ordem dos "princípios".

O facto é finalmente chocante porque, perante um tal ataque à liberdade de expressão, um entrave ao direito a criticar os dirigentes políticos e um abuso (declarado) na utilização de meios públicos em defesa própria, não se viu a vaga de condenações que esta situação mereceria.

Como é possível que alguém, com uma visão tão distorcida da democracia e das liberdades como Rui Rio, possa chegar onde ele chegou num partido democrático, na política nacional, numa autarquia com pergaminhos na democracia? A questão não é nova e é suscitada com maioria de razão no caso de Alberto João Jardim – com quem Rio se parece mais e mais a cada dia que passa – mas deve ser levantada no caso de Rui Rio, tanto mais que Jardim costuma ser desculpado pelos seus próprios correligionários por uma menoridade madeirense que justificaria uma particular benevolência e o Porto não parece querer reivindicar tal estatuto.

Rio garante que a sua abjecta cláusula é legal porque foi vista e revista pelos seus serviços jurídicos, mas não é preciso ser constitucionalista para saber que a cláusula é nula, pois não se podem alienar direitos fundamentais na assinatura de um protocolo. O que permite ver que a cláusula lá está apenas como uma forma de intimidação política, como uma manifestação de força que se ri da constituição e dos direitos.

Rui Rio – que ficará na pequena história de Portugal como o político a quem não se pode chamar "energúmeno" porque um Tribunal condenou a expressão – é um homem que quando houve falar de liberdade puxa da pistola e esta é mais uma prova. Isso já se tem visto através do seu relacionamento com a imprensa, com cuja liberdade Rio também não consegue conviver, mas se ainda faltassem provas, aqui estão elas. Que chame "cortesia" à proibição de lhe dirigirem críticas e que tente comprar essa "cortesia" através da concessão de subsídios com dinheiros públicos é apenas um sintoma de como está corrompida a sua noção de democracia e de como é autocrática a sua visão do exercício do poder. Os portuenses terão a certeza de que esta é a imagem que querem dar do Porto?

No mesmo dia ficámos também a saber que Gaia e o seu presidente da Câmara, Luís Filipe Menezes, usam outros métodos, mais subtis mas igualmente criticáveis, no seu relacionamento com a imprensa: os jornais que recebem publicidade institucional da câmara ficam obrigados por protocolo "a acompanhar adequadamente os actos públicos bem como toda a actividade da câmara e empresas municipais". Será uma maldição que tenha a ver com as águas do Douro? E não haverá por aí alguns democratas e homens e mulheres livres que se sintam ofendidos com a situação?

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