por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 30 de Maio de 2006
Crónica 20/2006
Que os juízes de uma democracia queiram controlar o léxico do debate público é mais do que preocupante.
Até onde se pode ir na censura de uma pessoa no âmbito da crítica artística, da polémica cívica ou da disputa política? Quais são os limites que protegem a reputação das pessoas, mas que garantem a ampla liberdade de opinião, de expressão, de informação e de crítica que são indispensáveis à procura da verdade, à liberdade de escolha e ao debate político que está na base da democracia?
As perguntas vêm a propósito de um processo concluído há dias, onde o Tribunal Criminal do Porto condenou um crítico do PÚBLICO, Augusto M. Seabra, por difamação, devido ao uso de um epíteto ("energúmeno") aplicado ao presidente da Câmara do Porto, Rui Rio, que se sentiu ofendido na sua honra (ainda que não fosse explicitamente nomeado) e decidiu processar o autor da peça de opinião.
Ainda que se trate de um caso particular, é interessante analisar algumas das questões que esta decisão judicial levanta.
Antes de mais, discutir a própria natureza da expressão "difamação". "Difamar" significa "tirar a boa fama", "desacreditar", "destruir a reputação". De que forma será afectada a reputação de alguém que é chamado energúmeno? Energúmeno significa originariamente "possuído pelo demónio", mas parece evidente que não é nessa acepção que é hoje em dia usado. O significado corrente é de alguém exaltado, que se manifesta de forma arrebatada, que gera desacatos onde reinava a tranquilidade. Imagine-se que digo que Fulano é um energúmeno. O que pensarão os meus leitores? De que forma irá isso afectar a sua reputação? É difícil imaginar porque é evidente que ao usar o qualificativo estou apenas a dizer qual é a minha opinião sobre Fulano e não a dizer algo sobre ele. Estou a dizer algo sobre o que penso dele. Isto não quer dizer que ser chamado energúmeno seja algo agradável – não é. É evidente que significa que não tenho grande admiração por Fulano. Mas o epíteto diz de facto mais sobre mim (sobre a minha opinião), que sobre Fulano (sobre os seus actos ou opiniões). Ninguém mudará de opinião sobre Fulano por eu lhe chamar energúmeno. É um puro exercício de opinião, uma crítica, eventualmente violenta, mas que se situa no estrito campo da opinião. Não é uma acusação (como seria "pedófilo" ou "corrupto") e não possui a capacidade de afectar a honra do visado (mesmo uma singularmente vulnerável).
Seria fácil continuar a contestar a capacidade difamatória da expressão, mas vamos ao outro valor que é necessário equilibrar com a defesa do bom-nome: a liberdade de expressão.
Ao condenar o uso da expressão "energúmeno", o Tribunal Criminal do Porto colocou de facto a expressão no Índex, gerando uma provável auto-censura que se traduz num lamentável empobrecimento da liberdade de expressão. De agora em diante será difícil que um jornalista use a expressão numa crítica. Talvez o Tribunal ache isso positivo, mas o que se poderá dizer então de uma figura pública (que manda a democracia que seja submetida a discussão e à crítica aberta dos cidadãos) que seja exaltado, arrebatado e que provoque conflitos por todo o lado (aquilo a que se chama, e o que os dicionários dizem ser, um energúmeno)? Será que o tribunal considera que não se pode dizer de um político que ele é exaltado, arrebatado e conflituoso? E, se considera que se pode, porque condena então o uso do "energúmeno"?
Tratar-se-á de uma questão de estilo? Tratar-se-á de uma questão de grau? Será enfim uma questão de gosto?
Existem normas para além das jurídicas (políticas, deontológicas, de cortesia) que regulam os comportamentos em sociedade. Nem tudo o que é socialmente criticável, politicamente inadmissível ou indelicado deve ser proibido pois corremos o risco de deitar fora o bebé (e o bebé aqui é nada menos do que os direitos individuais) com a água do banho. Que os juízes de uma democracia queiram controlar o léxico do debate público é mais do que preocupante: é inaceitável.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário