por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 16 de Maio de 2006
Crónica 18/2006
Existe na usurpação do espaço público e no inerente abuso de poder um considerável valor deseducativo.
O trajecto casa-trabalho faz-me atravessar todos os dias a pé a Rua Filipe Folque, em Lisboa.
Um belo prédio dos anos 40 onde em tempos esteve instalada no rés-do-chão uma garagem e que esteve anos devoluto e depois meses em obras, foi ocupado no final do ano passado pela estação de Correios das Picoas. A estação tinha vivido durante anos na Rua Tomás Ribeiro, num prédio bastante mais antigo e menos adaptável à função e os Correios constituíam aí um empecilho maior ao trânsito, com o seu movimento e o estacionamento de camiões e carrinhas.
Com a mudança para a Filipe Folque (onde existia uma gigantesca cave com capacidade para acolher todas as carrinhas imagináveis e todos os caixotes, grades e paletes), as melhorias pareciam inevitáveis.
A realidade é outra. Habituadas a ocupar o passeio, a zona de estacionamento e a via pública sem rebuço, as carrinhas dos Correios persistiram nos maus hábitos na nova morada, obrigando peões a sair do passeio e a disputar o asfalto aos carros.
É verdade que o panorama não tem nada de original em Lisboa. É mesmo tão banal que motoristas, carregadores e carteiros reagem com surpresa, dignidade ofendida e certeza dos direitos adquiridos perante os reparos dos passantes. Mas isso não torna a situação menos incómoda nem menos ilegítima.
Seria de esperar (e de exigir) que uma empresa pública reconhecesse a esfera do espaço público e respeitasse os seus limites, mas receio que na mente de alguns dos seus dirigentes o próprio estatuto de empresa pública avalize a apropriação ilegítima do espaço de todos.
A situação nem é rara nem se limita às empresas públicas: o pequeno, médio e grande comércio apropria-se indevidamente de passeios e faixas de rodagem e há mesmo quem tenha barreiras ou cones de plástico fluorescentes que coloca à frente da porta para garantir o estacionamento próprio e impedir o alheio, justificando-se com um direito consuetudinário e as dificuldades de estacionar na capital. E os serviços da Administração Pública fazem o mesmo, com um desplante olímpico, tolerado pelas autoridades.
Os incómodos deste estado de coisas são evidentes e a situação só não merece mais denúncias porque todos ou quase todos abusam ou esperam poder um dia abusar dela em benefício próprio.
O facto pode parecer de interesse menor e talvez seja, mas acontece que existe nesta usurpação do espaço público e no inerente abuso de poder um considerável valor deseducativo. A rua é a nossa primeira experiência da comunidade, de vivência do espaço social, e estes hábitos, que se vão enraizando, de estacionamento nos passeios e em segunda fila, de ocupação de faixas de rodagem para actividades de construção civil, de ocupação dos espaços verdes e das praças para publicidade e de apropriação privada dos espaços públicos em geral, criam gerações de cidadãos para quem o abuso, a força e o facto consumado se tornam a norma do relacionamento social. Uma norma que diz que os carros são mais importantes que as pessoas; que diz que quem tem carro tem o privilégio de o estacionar onde quiser sem se preocupar com quem estorva; que diz que o espaço público pode ser sequestrado por quem tiver o maior desplante; que diz que os polícias não devem incomodar nem as empresas, nem os serviços públicos nem os poderes em geral mas apenas os cidadãos anónimos; que diz que a lei e os bons costumes são apenas regras inventadas para enredar as pessoas sem ousadia e que o mundo pertence a todos os outros.
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