por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 23 de Maio de 2006
Crónica 19/2006
Carrilho é mal-querido dos media e daí que pareça possível descartar as suas acusações como despeito. Não é.
Se Manuel Maria Carrilho andasse a dizer nos bares, nos esconsos dos congressos e nos Passos Perdidos o que escreveu no seu livro "Sob o signo da verdade" ninguém levantaria uma sobrancelha. O país (todo o país: políticos, media, jet set e sociedade em geral) seguiria babando-se a telenovela, relatando réplicas e contra-ataques, acrescentando insinuações e pormenores picantes. Mas, como decidiu escrever e pôr preto no branco as suas críticas e acusações, com nomes e datas, aqueles que lhe dedicam uma antipatia de estimação apressaram-se a colocar o livro na lista das suas falhas de carácter.
O livro tem o mérito da enunciação, se não da denúncia: é positivo ver referido o "Expresso" em vez de "um semanário da capital" ou mesmo o PÚBLICO, em vez de "um diário de referência". Uma vez expressas abertamente as críticas, é possível aos visados a defesa ou o contra-ataque – uma possibilidade que a barragem de boatos ou de imprensa negativa só episodicamente deu a Manuel Maria Carrilho durante a sua campanha das autárquicas.
Carrilho faz no seu livro muitas críticas e acusações, algumas delas graves. Se a mais séria é feita a António Cunha Vaz, proprietário de uma agência de informação institucional, que Carrilho acusa de lhe propor a recolha ilícita de fundos para a sua campanha e a compra de opinião nos jornais, não faltam acusações à pratica jornalística em geral - e nomeadamente ao PÚBLICO. Seria normal que o facto desencadeasse uma discussão e reacções de desagravo, mas o que é curioso é que já se desenha uma minimização das críticas de Carrilho, desculpando-as com a dor de cotovelo do candidato derrotado (como se essa dor o tivesse feito perder a cabeça e o tornasse inimputável), quando não com o facto de Carrilho ter explorado ele próprio o foco da ribalta dos media sempre que pôde (como se isso o obrigasse a sujeitar a todos os caprichos e desvios dos media ou a prescindir do seu direito de crítica).
No fundo, tudo se passa como no proverbial caso da prostituta violada, que não consegue ver a sua queixa aceite pela polícia. A verdade é que a prostituta pode ser violada e a sua queixa merece a mesma atenção que a de outro cidadão, independentemente do juízo moral que a sua ocupação suscite, e a recusa em lhe reconhecer esse direito constitui um crime não inferior ao primeiro.
No caso vertente, Carrilho é mal-querido dos media (apesar de algum fascínio pontual) e daí que pareça possível descartar as suas acusações como despeito. Não é.
A questão central é que, tenha Carrilho feito o que fez, tenha aproveitado ou não os media quando pôde, seja ou não deselegante, intratável e rancoroso (e mesmo que tivesse feito tudo aquilo que insinuavam os piores rumores), isso não pode justificar o enviesamento na apresentação dos factos por parte de jornalistas, nem a mistura de opinião em peças apresentadas como noticiosas, nem a duplicidade de critérios – como Carrilho acusa os media de fazer. É por isso que urge responder, com factos, e preto no branco, às acusações de Carrilho e averiguar até que ponto as suas acusações possuem alguma base.
Uma das acusações de Carrilho é clássica: a preocupação dos media pelas questões marginais e folclóricas e a sua despreocupação com o fundo das questões. Curiosamente, mesmo com o seu livro se passa isso: o livro foi noticiado nalguns meios num tom jocoso e as acusações mais sérias que contém estão a ser tratadas como uma zanga de comadres quando nada no tema o parece justificar.
Finalmente, e mesmo que as mais sérias acusações de Carrilho se revelem infundadas, há algo que não se pode varrer para debaixo do tapete e de que o livro do deputado socialista mostra alguns exemplos: o respeito pelos factos, a equidade de tratamento, a necessidade de confirmar dados e a separação de opinião e informação estão a afastar-se perigosamente da prática jornalística geral, em prol de abordagens definidas por razões comerciais ou imperscrutáveis, que não respeitam a deontologia jornalística. Esse é o problema.
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