por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 18 de Abril de 2006
Crónica 14/2006
Morrem nas nossas estradas todos os anos mais de mil pessoas e cerca de 4.000 sofrem lesões graves
Até anteontem nunca tinha ouvido o seu nome, nem visto a sua cara, nem lido nada que lhe dissesse respeito, nem ouvido fosse quem fosse falar do seu trabalho.
Mas foi fácil perceber que uma parte considerável do país (ou pelo menos dos adolescentes portugueses) ficou em estado de choque pela morte do jovem actor Francisco Adam, um dos protagonistas da telenovela portuguesa "Morangos com Açúcar".
Um indicador objectivo entre outros: nas 24 horas que se seguiram à confirmação da morte do jovem, foram publicados no site do PÚBLICO mais de 340 comentários de leitores, o que faz desse acontecimento o mais comentado de sempre na história do PUBLICO.PT – ultrapassando questões como os processos judiciais em Portugal contra as cópias ilegais de música na Internet (mais de 300 comentários em três dias) e deixando muito para trás assuntos tão polémicos e populares como o abandono da TVI por Marcelo Rebelo de Sousa (mais de 100 comentários). E note-se que os comentários do PUBLICO.PT são submetidos a um escrutínio editorial e não difundidos sem supervisão, como acontece noutros sites.
Depois da consternação e da tristeza que é impossível deixar de sentir quando sabemos que mais um jovem de 22 anos se matou contra um eucalipto ao volante do seu carro, depois de sair às quatro da manhã de uma discoteca, a primeira constatação após todas estas reacções é a da existência de subculturas insuspeitadas e recheadas de paixões violentas em fenómenos que são para tantos de nós tão marginais como as telenovelas. Outra constatação, na mesma linha mas mais perturbadora, é a de que, neste caso, essa subcultura e essas paixões se manifestam não apenas na faixa adolescente mas também na pré-adolescente e até infantil, que se afirmam cada vez mais como alvos preferenciais do marketing mundial.
Nos comentários dos jovens (os autores, pelo menos, parecem jovens), que vão dos "nunca te esqueceremos" aos trágicos "porque é que não fui eu em vez de ti" e chegam às dúvidas sobre a existência de um Deus tão cruel que é capaz de arrebatar "uma das personagens mais divertidas da série", são evidentes as confusões entre o personagem da ficção e a realidade do actor (apenas por parte dos mais novos?) mas é particularmente perturbadora a valorização da ficção como vida projectada alternativa, essa "vida por procuração" que a televisão popular se especializou em fornecer, mostrando-nos a vida do "jet set" ou do que passa por isso e permitindo-nos viver os namoros da "beautiful people" ou da que passa por ela.
Outra constatação, menos previsível, é o fatalismo romântico destas reacções ("Deus levou-te") que não admite qualquer causalidade que não a dos fados, para que o ídolo morto (há referências a "James Dino" em alguns "posts") não possa de alguma forma ser responsabilizado pela sua própria morte. A simples referência à possibilidade de excesso de velocidade, razoável atendendo as circunstâncias do acidente, é refutada liminarmente pelos fãs para não embaciar a memória do actor.
A morte de Francisco Adam, porém, pode servir para nos ajudar a encarar alguns factos: morrem nas nossas estradas todos os anos mais de mil pessoas e cerca de 4.000 sofrem lesões graves que em muitos casos as incapacitam, para além de dezenas de milhares que sofrem ferimentos mais ligeiros. Muitas destas vítimas são jovens e muitas têm acidentes depois de saírem de bares e discotecas. No caso vertente, as causas do acidente não são conhecidas, mas haveria certamente mortes e ferimentos que se poderiam evitar se se seguisse nos bares e discotecas portuguesas a saudável regra de não servir álcool a quem se sabe que vai conduzir e de responsabilizar criminalmente quem o fizesse. Os fados agradeceriam a ajuda.
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