por José Vítor Malheiros
Textos publicados no jornal Público a 1 de Abril de 2006
Suplemento Mil Folhas
Prova, evidência, controvérsia, convicção, crença, certeza, conhecimento. São algumas das palavras-chave centrais na obra do fi lósofo Fernando Gil, falecido a 18 de Março, em Paris, com 69 anos. Neste dossier, tentamos abordar diferentes facesdesse homem do seu tempo, apaixonado pelo saber e pela acção. Neste texto, tentámos, com a colaboração de dois filósofos que o conheceram de perto e que com ele trabalharam, Paulo Tunhas e André Barata, explicar algo da filosofia de Fernando Gil.
Na obra de Fernando Gil há um elemento central:
um sujeito que pensa e que sente, com contexto
e com história, e é sobre esse sujeito que o filósofo
se interroga. Quais são as crenças que este sujeito
possui ou que o habitam? Que convicções tem?
Em que acredita e do que é que está convencido?
De onde vêm estas crenças e estas convicções?
O que é que este sujeito aceita como evidente
e porquê? Quais são os atributos que fazem com
que considere certas coisas como evidências
inquestionáveis, que lhe entram pelos olhos dentro,
e o que é que o faz, noutros casos, exigir provas
sobre provas para conseguir aceitar algo como
verdadeiro? Do que é que se pode deixar convencer
e porquê? Que argumentações o podem demover,
que provas o podem convencer? Porque aceita isto
como evidente, aquilo como verdadeiro, outra coisa
como possível ou provável e outra como impossível?
Porque se deixa governar por uma superstição
e recusa uma verdade científica?
Fernando Gil é por vezes apresentado como
um especialista de lógica. A notícia necrológica
publicada pelo diário francês “Le Monde”
usava esse qualificativo e é um facto que
o seu trabalho inicial passou de uma forma
central por este domínio da filosofia.
A sua primeira obra de relevo, “A Lógica
do Nome”, tese de doutoramento dirigida
por Suzanne Bachelard, filha de Gaston Bachelard,
é considerada pelos especialistas
uma obra de lógica, mas seria uma cruel
caricatura imaginar que Fernando Gil se
poderia satisfazer com jogos de dedução
das consequências lógicas de um qualquer
conjunto de proposições. No trabalho de
Fernando Gil há um elemento central: um
sujeito que pensa e que sente, com contexto
e com história, e é sobre esse sujeito que
Gil se interroga. Quais são as crenças que
este sujeito possui ou que o habitam? Que
convicções tem? Em que acredita e do que
é que está convencido? De onde vêm estas
crenças e estas convicções? O que é que
este sujeito aceita como evidente e porquê?
Quais são os atributos que fazem com que
considere certas coisas como evidências inquestionáveis,
que lhe entram pelos olhos
dentro, e o que é que o faz, noutros casos,
exigir provas sobre provas para conseguir
aceitar algo como verdadeiro? Do que é
que se pode deixar convencer e porquê?
Que argumentações o podem demover, que
provas o podem convencer? Porque aceita
isto como evidente, aquilo como verdadeiro,
outra coisa como possível ou provável
e outra como impossível? Porque se deixa
governar por uma superstição e recusa uma
verdade científica?
E como se conseguem conhecer os processos
que produzem convicções de todos
estes graus, com tantos sabores e matizes?
Que abordagem racional pode analisar estas
teias de racionalidade e de irracional?
O conhecimento que interessava Fernando
Gil não é um conhecimento em abstracto
mas o conhecimento que é passível de ser
detido por um sujeito e em particular as
suas crenças e convicções. Foi isso que
constituiu o seu objecto de estudo. O que o
interessava não era tanto a estrutura lógica
do conhecimento (embora isso obviamente
também o interessasse), mas saber como é
que um sujeito pode conhecer e o que o leva
a acreditar nesse conhecimento. Saber o que
leva um sujeito a criar um dado modelo do
mundo e defi nir o que pode alterar, moldar,
reforçar ou pôr em causa esse modelo.
“Não há prova nem saber sem um destinatário”
“Aquilo que Fernando Gil procurou sempre,
pelo menos a partir do seu segundo livro,
‘A Lógica do Nome’”, explica o filósofo
Paulo Tunhas, seu amigo e colaborador em
várias obras, “foi sempre, de uma forma ou
de outra, tentar determinar as razões da
crença, mesmo que essa temática só tenha
aparecido de uma forma explícita com o
‘Tratado da Evidência’. Mesmo em livros
anteriores, como ‘Mimésis e Negação’, o
núcleo das preocupações futuras já estava
lá (a questão da imaginação, por exemplo).
Ao fi m e ao cabo, a preocupação de Fernando
Gil foi sempre a de conseguir determinar,
apurar, as razões pelas quais nós temos razão
para acreditar”.
O filósofo André Barata, que também
colaborou com Fernando Gil, prefere sublinhar
no seu trabalho a perspectiva da
inteligibilidade, a preocupação com aquilo
que pode ser conhecido.
“A meu ver o cerne do trabalho de Fernando
Gil é uma filosofia da inteligibilidade.
Fernando Gil tentou encontrar diferentes registos
de inteligibilidade (a inteligibilidade
da ciência, do senso comum, da filosofia)
e tentou compreender como é que essa
inteligibilidade acontece, preocupando-se,
em particular, com o lado subjectivo que
está subjacente à inteligibilidade. Há uma
expressão particularmente feliz que usa no
último livro: ‘Não há prova nem saber sem
um destinatário’. Toda a prova e todo o saber
estão instalados num sujeito. E Fernando Gil
procurou encontrar não tanto as condições
objectivas (que também o preocupavam)
mas as condições subjectivas do conhecimento”.
O que faz acreditar?
A inteligibilidade que ocupa Fernando Gil
vai porém além da inteligibilidade das coisas
e mesmo da inteligibilidade das provas ou
da argumentação (é possível compreender
algo sem que isso nos convença, sem na
realidade o aceitarmos, sem adesão), para
se estender à inteligibilidade da crença e
da convicção.
“O que Fernando Gil quer saber é o que faz
alguém acreditar, por exemplo, numa teoria
científica, a começar pelo próprio criador da
teoria”, diz Paulo Tunhas.
Para defi nir o que forma essa convicção,
para identificar as regras ou regularidades a
que obedece a formação da convicção, para
tentar encontrar uma lógica da prova e da
convicção, Fernando Gil estudou os exemplos
da história da ciência e da filosofia e
as grandes controvérsias científicas – como
a que opôs no século XIX os naturalistas
franceses Geoffroy Saint-Hilaire e Georges
Cuvier em torno da evolução, ou as teorias
de Kepler.
“Estes estudos eram já tentativas para
estabelecer os mecanismos da relação entre
o criador da teoria e a própria teoria”, explica Tunhas. “É já uma preocupação com
o processo da crença, algo que obedece a
preocupações distintas das de alguém como
Karl Popper. Para Popper, os mecanismos a
que obedece o processo da crença pessoal
na verdade de uma teoria científica são
razoavelmente irrelevantes. Para Gil, são
fundamentais”.
A centralidade do sujeito
Esta centralidade do sujeito, que constitui
uma característica da filosofia de Fernando
Gil e que pode parecer banal para um leigo
(quem poderá conhecer, senão um sujeito?),
é, na realidade, algo que vai a contracorrente
das preocupações dominantes da epistemologia,
onde Gil se move.
“A epistemologia, que é o campo privilegiado
de trabalho de Fernando Gil, tem
como objecto de estudo o conhecimento
científico”, explica André Barata, “e foi
assimilando a preocupação da ciência com
as condições objectivas do conhecimento e
descurando as condições subjectivas desse
conhecimento – que era o que interessava
a Fernando Gil”.
A preocupação da ciência compreende-se:
uma lei científica tem de poder ser validada
de forma independente do sujeito que a
produz ou a analisa e a sua formulação deve
obedecer a critérios que procuram a maior
objectividade possível. Introduzir na ciência
a problemática de sujeitos que podem ou
não ser convencidos por uma lei científi ca,
abalaria o edifício de forma destruidora. A
ciência eliminou o sujeito e a epistemologia
seguiu-a, afastando do caminho as preocupações
com a convicção.
“Eu diria que a introdução do sujeito em
epistemologia é um dos grandes temas de
Fernando Gil”, diz Paulo Tunhas. “As suas
preocupações encontravam-se muito ao arrepio
das doutrinas maioritárias no mundo
filosófico (nomeadamente do mundo filosófico francês, muito marcado pelo desconstruccionismo,
mas também em boa parte do
anglo-saxónico), que eram essencialmente
negativas, empenhadas em mostrar a artificialidade da crença, ou a de noções como
a de sujeito. Fernando Gil, estando atento a
alguns dos bons motivos que moviam essa
crítica, tentou procurar exactamente o contrário:
determinar positivamente o que é que
nos leva a acreditar, o que é a evidência, o
que é que engendra a convicção, o que nos
faz conhecer o mundo. É nesse sentido que
há sem dúvida uma tonalidade afirmativa
do pensamento de Fernando Gil.”
Partilhar a crença
Enunciar em termos simples as contribuições
de Fernando Gil não é uma tarefa simples. Além de que
a filosofia não visa encerrar problemas e a
problematização e a formulação constitui
por si um resultado filosófico. Que respostas
avança Fernando Gil para as perguntas
que lança? Que soluções propõe para os
problemas que levanta? Que teses deixa
sobre a mesa?
“Em última análise, em filosofia ninguém
resolve nada”, responde Paulo Tunhas, “mas
creio que Fernando Gil conseguiu apurar determinados
mecanismos que estão na origem
da convicção e isso é um avanço fi losófi co
grande. Eu creio que aquilo que ele escreve
na ‘Convicção’ sobre a relação entre fundamento
e fundação é uma solução para um
problema filosófico real: a distinção entre
as crenças difusas e vagas e a convicção
apoiada. Fernando Gil diz que as crenças
construídas através do apelo estrito a um
fundamento, a um mecanismo de autoridade
(é assim porque é assim!), não são passíveis
de reconstrução por nenhum outro espírito,
não são partilháveis. Apenas são partilháveis
as crenças construídas através de um
processo de fundação, que são as crenças
que nós sabemos construir, tal como podemos
fazer uma construção matemática. A
fundação é o processo de construção e de
reconstrução da crença. O fundamento é a
imposição da crença.
Enquanto o fundamento apenas pode levar
a crenças difusas, a fundação permite crenças
apuradas e determinadas. Sempre que é
possível passar de uma crença difusa para
uma explicação dos mecanismos da crença,
para um justificação, há um avanço”.
De novo no palco
A “velha tese clássica” da existência do
sujeito é evocada tanto por Paulo Tunhas
como por André Barata como central na
filosofia de Fernando Gil.
“Penso que Fernando Gil produziu teses
(suponho que ele não gostaria da expressão)”,
diz Tunhas, “ que contribuem para a reelaboração
do estatuto do sujeito e que reforçam
a ideia de que o sujeito não é uma ficção
ou uma construção artificial. Fernando Gil
propõe que o nosso conhecimento do mundo,
o conhecimento das ciências, implica sempre
uma adesão pessoal e que os mecanismos da
prova, para serem eficazes, exigem sempre
um processo de transformação da crença em
convicção do próprio sujeito”.
Como é que Fernando Gil coloca o sujeito
no palco? Dando-lhe, na crença, o papel de
um actor central. André Barata explica como:
“O que a crença tem de especial é que empenha
o sujeito da crença. O sujeito é penhor
dessa crença. Para dizer que 2+2 é igual
a quatro eu não preciso de me empenhar
pessoalmente – isso é certo, absolutamente
certo. Mas se eu disser que os homens são
naturalmente bons, tenho de me empenhar,
de me dar como penhor. Isto é importante
porque nos autoriza a falar do incerto, usando
o próprio sujeito como penhor. E o sujeito
pode servir de penhor porque o sujeito (para
si próprio) é a coisa mais certa que há. É como
se as pessoas se apostassem a si mesmas
na verdade de qualquer coisa. Este papel do
sujeito é importantíssimo.”
Mas até que ponto precisamos da crença?
Não nos basta uma convicção científica
baseada em provas de onde o sujeito pode
estar excluído, à maneira Popperiana? Não,
diz Fernando Gil, porque há um estrato
último, irredutível, que é irracional, e que
é inescapável. “Não se trata da crença religiosa”,
diz Tunhas. “É a crença no mundo,
na existência desta cadeira, na existência
do outro, um conjunto de crenças arcaicas
e originárias que estão na base de todas as
outras crenças e convicções”.
Outro Universo
Se há um estrato de crença irracional, básico,
primitivo, indesmontável, há igualmente
um estrato de convicção que também resiste
à análise. Outra ideia cara a Fernando Gil:
a evidência. Aquilo que se mete pelos olhos
dentro, que está aquém do discurso e que
não carece de prova nem de argumentação
para nos convencer.
“Fernando Gil fez algo que nunca ninguém
tinha feito na história da filosofia:
pôs em questão a evidência”, diz André
Barata. “Disse que a evidência não é de
todo evidente e que devia ser questionada.
Quando fazemos uma demonstração, o que
procuramos alcançar é a evidência. Dizemos
‘Isto é evidente!’ e damo-nos por satisfeitos.
E Fernando Gil vem tentar perceber qual é a
singularidade da evidência, perguntar o que
é que a evidência tem de tão especial”.
O questionamento da evidência tem o
seu quê de vertiginoso, pois abre, no meio
da mais inquestionável certeza, a maior
ignorância (como se prova a evidência da
evidência?), como um buraco negro para
onde tudo converge mas de onde sai, “do
outro lado”, um universo paralelo. Mas dá-nos
uma boa medida da inquietação, do rigor
e da exigência rara de Fernando Gil.
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