sábado, abril 01, 2006

Fernando Gil (1937-2006) - Clareza e obscuridade

por José Vítor Malheiros

Textos publicados no jornal Público a 1 de Abril de 2006
Suplemento Mil Folhas

“Clareza” é uma expressão que surge com
frequência nos depoimentos dos filósofos
quando se fala da obra de Fernando Gil. No
entanto, para um leigo, os seus livros constituem
um desafio que pode transformar-se
num obstáculo inultrapassável. É verdade
que isso acontece menos numa obra como
“Acentos”, por exemplo, recheada de entrevistas,
com uma clara intenção de divulgação
e ideal para uma abordagem ao filósofo, ou
em muitas das comunicações das conferências
que Fernando Gil coordenou e onde se
reflecte o seu pensamento, mas as suas obras
centrais resistem à divulgação. A questão não
é nova – os filósofos recusam a simplificação
e a redução da profundidade que a divulgação
implica com mais vigor ainda que os cientistas
– mas ela coloca-se, de novo, sempre que
o interesse do público por um autor é despertado
pelos media para ser frustrado pela
sua leitura e constitui mais uma vertente do
problema nacional de iliteracia.
Paulo Tunhas não considera de todo que
haja um problema de falta de clareza em
Fernando Gil, enquanto filósofo: “Creio que
se foi tornando progressivamente mais claro.
Ou melhor: havia desde o princípio uma clareza
intelectual, que progressivamente se foi
acompanhando daquilo que podíamos chamar
uma clareza sensível. ‘A Convicção’ é mais
claro do que a ‘Logique du nom’, porque ele
sabia melhor o que queria dizer. A ‘Logique
du nom’ era clara, mas os problemas dele não
estavam ainda bem definidos, eram ainda em
parte problemas dos outros: na ‘Convicção’,
e já desde há muito antes, os problemas eram
completamente dele. Eram ele.”
Mas o mesmo Paulo Tunhas reconhece o
que podem ser as dificuldades da tarefa da
leitura para um leigo: “Fernando Gil sempre
usou – porque tinha de usar – vocabulário
técnico. E o vocabulário técnico é forçosamente
opaco para quem o não conhece. De
modo que os não-filósofos podem, muito
legitimamente, achá-lo obscuro. A dificuldade
tem a ver com o próprio objecto. Mas, se
constatarmos a total ausência de retórica das
profundidades em Fernando Gil, há que reconhecer
que, desde o princípio, ele se esforçou
por ser claro. Mas há matérias em que querer
ser claro à força é fazer batota e fingir ser um
‘grand seigneur’ do pensamento, sobrevoando
tudo com desprezo pelos detalhes. Isso ele
nunca o fez. O que ele tentou fazer foi tornar
o vocabulário técnico mais sensível.”
“No fundo”, continua Paulo Tunhas, “as
duas coisas vão uma com a outra. A partir
do momento em que a terminologia técnica
(‘intuição’, por exemplo) se vê acompanhada
de um semantismo comum – e ele progredia
cada vez mais nessa direcção – e a partir do
momento em que os problemas vão sendo cada
vez mais bem compreendidos, o espaço da
clareza aumenta. Nesse sentido, eu acho que
‘Acentos’ é a melhor introdução possível ao
pensamento dele. Mas é sempre verdade, como
notou Popper, que, quando se tem algo de
novo para se dizer, é difícil ser cristalino.”
Tunhas chama a atenção, porém, para a
maior liberdade de estilo das últimas obras
de Gil e para a sua escrita menos marcada por
tiques académicos como as notas de rodapé.
André Barata, por seu lado, concede que
não se entra sem ser apresentado no pensamento
de Fernando Gil. “A inteligibilidade
da obra do Fernando Gil tem de ser pensada
dentro dela própria. Quando estudamos Nietzsche
tornamo-nos especialistas de Nietzsche
e quando estudamos Kant tornamo-nos especialistas de Kant. Ficamos dentro daquele
universo, que tem portas e janelas, mas que
é um universo, com uma inteligibilidade própria.
Com Fernando Gil acontece um pouco
o mesmo: é um universo. Nesse sentido o
Fernando Gil é um pouco inacessível, é preciso
entrar na sua obra para a obra despertar.
É um autor difícil. Ou se alinha ou não se
alinha.” José Vítor Malheiros


Algumas datas

1937
Nasce a 3 de Fevereiro em Muecate,
Nampula, em Moçambique

1961
Licencia-se em Direito na Faculdade
de Direito de Lisboa.
Desiste da advocacia e parte para Paris

1964
Licencia-se em Filosofia na Sorbonne

1966
Inicia na Universidade de Paris,
sob a orientação de Suzanne Bachelard,
um doutoramento em Lógica

1984
Publica “Mimésis e Negação”
e recebe pela primeira vez
o Prémio Ensaio do Pen Club

1993
Publica a sua obra mais importante,
“Tratado da Evidência”.
É-lhe atribuído o Prémio Pessoa

2006
Morre em Paris a 18 de Março,
com 69 anos

Obras

Aproximação Antropológica
1961
Livro onde se reflectem preocupações
existenciais de juventude

A Lógica do Nome
1972
Tese de doutoramento no domínio da
lógica, onde se ocupa do problema da
referência dos nomes

Mimésis e Negação
1984
Obra onde defende que o pensamento é
sempre feito por oposições

Provas
1986
Estudo sobre a forma e as condições em
que é feita a prova científica

Tratado da Evidência
1993
Uma das suas obras mais importantes
onde problematiza o conceito de
evidência, questionando o seu carácter
imediato

Modos da Evidência
1998
Obra que procura confirmar em várias
domínios a sua teoria da evidência

Viagens do Olhar
(com Helder Macedo) 1998
A mesma procura de “Modos da
Evidência” na literatura

A Convicção
2000
Estudo sobre a crença e a convicção
enquanto aspectos subjectivos do
conhecimento

Mediações
2001
Obra em que defende que o pensamento é
mediação

Impasses
(com Paulo Tunhas) 2003
Reflexão sobre o pós 11 de Setembro e a
crise no Iraque

Acentos
2005
Conjunto de entrevistas e textos dispersos
sobre alguns temas inesperados

A 4 Mãos
(com Mário Vieira de Carvalho) 2005
Obra sobre Schumann, o seu compositor
preferido

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