terça-feira, maio 25, 2004

No cameras, please

por José Vítor Malheiros


Texto publicado no jornal Público a 25 de Maio de 2004
Crónica 20/2004


A mensagem que é dada é que, para a administração americana, o que é grave não é que os atropelos tenham sido cometidos, mas que tenham sido divulgados.


Donald Rumsfeld tomou finalmente uma medida clara relativamente à tortura e às humilhações infligidas a prisioneiros iraquianos pelas forças armadas dos EUA. Pode ter demorado a reagir, pode ter tido relutância em admitir a responsabilidade dos militares sob as suas ordens, pode ter tentado esconder a sua própria responsabilidade, pode ter tentado minimizar os factos, mas acabou por tomar uma medida desprovida de ambiguidade sobre a questão. A medida tomada pelo Pentágono, noticiada por um semanário britânico, é a proibição aos militares americanos de usar telemóveis equipados com máquina fotográfica, máquinas fotográficas digitais e câmaras de vídeo no interior das instalações militares no Iraque.

A determinação do Pentágono aplica-se, para já, apenas ao Iraque, mas será futuramente aplicada a todas as instalações militares americanas.

Aceita-se sem rebuço que haja limitações à captura de imagens dentro de instalações militares – sejam elas quais forem e seja em que país for. A questão não é essa. A questão é que esta medida é uma reacção à divulgação dos maus tratos a prisioneiros de Abu Ghraib. É isso que é revelador da sua intenção.

Se o verdadeiro objectivo do Pentágono fosse pôr fim aos abusos dos prisioneiros, a divulgação destas imagens só poderia ser vista como um passo no bom sentido (por muito prejudiciais que tenham sido para a imagem dos EUA), pois permitiria extirpar uma prática condenável. A mensagem que é dada é que, para a administração americana, o que é grave não é que os atropelos tenham sido cometidos, mas que tenham sido divulgados. E para evitar que esse erro grave se repita, basta proibir a captação de imagens. Os EUA não querem que ninguém veja a forma como tratam os seus prisioneiros. Como mensagem é preocupante, pois alimenta os piores receios – nomeadamente o de que Abu Ghraib não seja uma excepção mas a norma e de que os maus tratos prossigam (ou recrudesçam) uma vez garantida a ausência de câmaras.

Proponho uma experiência conceptual àqueles que pensam que todos somos iguais mas que os EUA são mais iguais do que os outros: se tivessem sido divulgadas imagens semelhantes passadas numa prisão portuguesa, acham que se deveria sugerir que a entrada de câmaras nas prisões passasse a ser mais controlada? Seria esta a coisa certa a fazer? Ou isso seria inaceitável como reacção no nosso caso mas é aceitável no caso dos EUA porque eles têm sobre as suas costas o fardo do império?

A proibição dos telefones fotográficos é mais um tique, daqueles que os EUA exibem com preocupante frequência nos últimos tempos: um tique totalitário. (Alguém se recorda das posições americanas em relação à China a propósito das tentativas de controlar o acesso à TV por satélite e à Internet?)

Que as imagens são preocupantes para os poderes já sabemos (veja-se o recente caso do vídeo do casamento iraquiano bombardeado pelos EUA), que a multiplicação dos meios de captação e de difusão está a mudar a geografia dos poderes no mundo também tem sido amplamente glosado nos últimos tempos, mas a incomodidade perante as imagens, num regime democrático, não pode ser gerida através da censura. Pode argumentar-se que isto apenas é verdade na vida civil mas não na esfera militar. Acontece porém que o fito do segredo militar é proteger o segredo de operações – não a prática de crimes.

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