por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 11 de Maio de 2004
Crónica 18/2004
Retracção dos direitos cívicos, agudização da discriminação religiosa e racial, propaganda supremacista branca. É este libreto que os tristes soldados de Abu Ghraib interpretam, à sua triste maneira.
A divulgação dos actos de tortura e humilhação a que foram submetidos prisioneiros das tropas americanas no Iraque deram origem, num primeiro momento, à esperada condenação unânime e, num segundo momento, à inevitável bifurcação moral. Enquanto uns consideraram a revelação como uma prova em si da superioridade moral da democracia americana e exprimiram a sua convicção de que os responsáveis seriam identificados e castigados, o que provaria de forma ainda mais cabal a dita superioridade, outros apressaram-se a comparar a actual situação no Iraque em termos de direitos humanos aos tempos do ditador Saddam.
Ainda que se deva admitir o princípio da responsabilidade dos dirigentes pelos actos dos subordinados (eventualmente sem culpa) é consensual que a responsabilidade política de Rumsfeld e Bush (porquê parar em Rumsfeld?) seria nula se se tivesse tratado de actos isolados de uns quantos soldados (um ou vinte, é irrelevante), claramente desenquadrados da prática geral, da vontade das chefias militares e das ordens expressas recebidas.
Porém, já sabemos que não é assim. Sabe-se hoje que, pelo menos na prisão em causa, Abu Ghraib, esta prática estava generalizada, que era conhecida das chefias militares e era tolerada, que tinha sido investigada e posta preto no branco num relatório militar, que tinha prosseguido após essa investigação e parece ser mesmo resultado de ordens directas dos serviços secretos. A multiplicação de provas fotográficas e videográficas é, aliás, a melhor prova da convicção de impunidade dos protagonistas desses actos.
Para os adeptos mais fervorosos da política de Bush, os episódios de tortura não são senão um pequeno desvio (lamentável) a algo que é a justa linha do partido que representa a vanguarda da História – o Partido Republicano americano.
No entanto, é sabido (por quem queira saber) que existem nas prisões americanas em geral - não é preciso chegar ao Iraque – os mais chocantes e sistemáticos abusos dos direitos humanos, bem documentados e com constantes condenações de organizações domésticas e internacionais. Mas, como “os EUA são uma democracia” e precisamente porque muitos destes abusos são denunciados, eles podem ser ignorados com um comentário desculpabilizador. Numa operação de branqueamento moral, as constantes denúncias dão origem não a uma condenação mas a uma ilibação do sistema.
Que a guerra traz ao de cima o que de pior existe nas pessoas já se sabe e não havia razão para esta ser excepção. Mas há outra razão para não haver surpresa nos casos de tortura na prisão de Abu Ghraib. É que eles inscrevem-se na lógica, que tem vindo a ser seguida nos EUA desde o 11 de Setembro, de constante atropelo dos direitos humanos em nome da segurança – na qual o caso de Guantánamo ganhou maior destaque, mas não é único. A lógica de Guantánamo – que não é da responsabilidade individual de uns quantos soldados – é a lógica das leis de excepção, do parêntesis nos direitos humanos, justificado em nome da defesa nacional. Esta deriva securitária, denunciada por inúmeras organizações americanas, traduz-se numa retracção radical dos direitos cívicos, numa agudização da discriminação religiosa e racial, num moralismo asfixiante e numa propaganda supremacista branca e cristã que se transformou de facto no coração do regime – para tristeza dos democratas que reconhecem sólidas virtudes no sistema americano. É este libreto que os tristes soldados de Abu Ghraib interpretam, à sua triste maneira. Nesse sentido, os seus actos inscrevem-se na lógica do sistema – como Guantánamo, que talvez um dia Rumsfeld venha dizer que não sabia que existia…
Nesse sentido, os responsáveis políticos americanos, com Bush à cabeça, são certamente responsáveis por eles.
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