por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 27 de Abril de 2004
Crónica 16/2004
A revolução tem de ser feita por alguém, tem uma conjugação pessoal, enquanto que a evolução é algo que apenas acontece, de forma impessoal.
É claro, para todos os que não possuem uma profunda má-vontade contra a História, que no 25 de Abril ocorreu uma revolução. Essa revolução traduziu-se em profundas roturas (algumas violentas) a todos os níveis da vida nacional, do poder político ao exercício quotidiano da cidadania e das liberdades, da administração pública à defesa, da economia à cultura, do ambiente à ciência, do papel das mulheres à relação de Portugal com o mundo. Não é possível fazer uma história da arte ou da economia portuguesas do século XX sem marcar o 25 de Abril com uma pedra (que poderá ser ou não branca, conforme os gostos, mas que é certamente diferente de lhe pôr uma pedra em cima).
É também inegável que houve, desde o 25 de Abril, uma enorme evolução em inúmeros (não todos, infelizmente) indicadores de desenvolvimento, que a última campanha governamental sobre a data quis pôr em evidência.
À partida, quando se pensa em mobilizar cidadãos para uma comemoração, a colocação da tónica na evolução em vez da revolução, percebe-se e até parece correcta. Enquanto que falar de "revolução" nos atira forçosamente para o passado (revolução é o que houve e já não há, nem haverá), falar de "evolução", remete-nos para algo novo (o que houve, ainda há e, com alguma sorte, vai continuar a haver).
A imagem dos cravos "à la Warhol" parece querer sublinhar essa releitura "modernizada" e "light" do 25 de Abril.
Acontece porém que as palavras transportam sempre mais do que uma ideia consigo. A ideia de revolução está certamente velha e doente, esconde debaixo da cama muitos segredos sórdidos e não traz grandes promessas para o futuro, mas possui uma história que é uma apologia da atitude insurreccional, iconoclasta, desrespeitadora da ordem instituída, que não agrada à cultura da direita conservadora hoje no poder.
A "evolução", por seu lado, tem subjacente a ideia de um progresso gradual, estável e sem sobressaltos, disciplinado e ordeiro.
Outra propriedade afasta os dois conceitos. É que a revolução tem de ser feita por alguém, tem uma conjugação pessoal, enquanto que a evolução é algo que apenas acontece, de forma impessoal. A revolução tem actores, protagonistas, agentes activos, é voluntarista, só acontece porque alguém quer e quer muito, tem um tempo e um lugar. A evolução é difusa, acontece em todo o lado e nenhum, sem darmos por isso, mesmo quando não queremos, está inscrita na ordem natural das coisas (vide Darwin), é fatal como o destino, está escrita nos astros ou noutro sítio qualquer, é involuntária. Pode-se evoluir sem vontade, mas não se pode fazer a revolução sem vontade.
Há uma ideia conservadora, que encontramos (com sabores diferentes mas a mesma conclusão) na direita e na esquerda representada por José Saramago que diz que a revolução foi irrelevante. A evolução gradual e impessoal (sem a paixão e certamente sem a rebelião), ter-nos-ia trazido aqui, mesmo sem termos tentado, deixando-nos levar.
É contra esta visão que há que valorizar a aprendizagem fundamental que os portugueses fizeram no 25 de Abril, que é o património genético da nossa democracia e que deve continuar a dar forma à nossa cidadania diária: a revolta é legítima e necessária, os direitos conquistam-se pela vontade e pela acção e o futuro está (também) nas nossas mãos. Nem todos gostamos de ser levados.
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